Título: O programa de governo de Lula
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2006, Notas e Informações, p. A3

Finalmente um contraponto à insuportável pobreza de idéias desta campanha presidencial: o discurso do presidente Lula ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, anteontem, no Palácio do Planalto. Pela primeira vez na temporada, um candidato apresenta algo assemelhado a um programa de governo, permitindo um debate substantivo sobre pelo menos uma concepção do tratamento a dar às questões mais relevantes para o interesse nacional. Como era de esperar, Lula fez o mais róseo retrospecto possível do que foi o mandato que caminha para o fim e a mais entusiasmante previsão do que fará e acontecerá no mandato que ele pretende inaugurar em janeiro de 2007. "Vou ser o mais otimista dos brasileiros consagrados, pelo menos no que diz respeito a discursos", permitiu-se admitir, num rasgo incomum de irônica autocrítica.

Além disso, não foram poucas as vezes em que as suas palavras se desencontraram dos fatos, a começar da já surrada teoria exculpatória de que "a crise ética que se abateu sobre o País", conforme o seu eufemismo para mensalão, é produto da "crise do sistema político em sua inteireza, e não apenas de algumas pessoas ou de alguns partidos". Como se pessoas e partidos - que, aliás, não foram tão algumas nem tão alguns assim - não tivessem a mais remota chance de escolher entre a corrupção e a correção na atividade política e no trato da coisa pública. O falso diagnóstico da doença conduz à prescrição de um remédio inócuo para a sua cura - a reforma política de que Lula resolveu se arvorar em principal defensor e cujos supostos poderes terapêuticos contra a imoralidade encontram eco até entre adversários de Lula.

Não há dúvida de que algumas das regras que governam o sistema político, partidário e eleitoral precisam mudar - com urgência. A instauração da fidelidade partidária é seguramente a medida em torno da qual o consenso é praticamente unânime. Mas isso em benefício da governança, da representatividade e da legitimação das instituições políticas. E se é fato que certas normas incentivam e outras desestimulam a corrupção, nem por isso se deve supervalorizar a reforma política - qual delas, a propósito? - como instrumento de resgate da ética. Ao contrário do que diz o presidente, para distanciar-se da lambança praticada em proveito do esquema petista de poder, da qual foi o maior beneficiário, o sistema político não está em crise. Em geral, já existem os meios para prevenir e punir os assaltos ao erário. Falta acioná-los na medida das justas demandas da sociedade.

Mas atenda-se à exortação presidencial de "reduzir a tensão política" e "dedicar nosso tempo mais ao que nos une do que ao que nos divide". Dessa perspectiva, o discurso-programa de Lula - uma espécie de Carta ao povo brasileiro, modelo 2006 - contém promessas que respaldam as idéias de gestão racional das finanças públicas, as mesmas que o presidente herdou do antecessor e teve o bom senso de encampar. "Para não derrapar em direção a qualquer retrocesso", adverte agora, "é necessário manter o trabalho sério, a política econômica correta e a responsabilidade na área fiscal." Conduz igualmente à convergência a sua assertiva sobre a inflação. Ele disse e repetiu: "O meu compromisso com a inflação baixa é definitivo." É ainda animadora a sua intenção de abrir mais a economia "em setores indutores de avanços tecnológicos" e intensificar a "desoneração do investimento".

No entanto, o que se assistiu no governo Lula, principalmente este ano, recomenda pagar para ver se as suas ações, a se concretizar o segundo mandato que ele persegue desde que chegou ao Planalto, serão convergentes com as suas palavras em relação a um problema impossível de superestimar, tamanha a sua centralidade para que o Brasil "encontre, definitivamente, o caminho do desenvolvimento sustentável", como afirmou. Trata-se da política do gasto público. "Precisamos melhorar a qualidade do nosso gasto, diminuindo as despesas de custeio para investir mais em infra-estrutura e ter condições de reduzir a carga tributária", declarou. Foi o que não fez até agora, e é lícito perguntar se, nos próximos quatro anos - ainda mais se ele não conseguir atrair a oposição para o seu pacto de distensão política -, o enxugamento do custo do Estado não sucumbirá aos velhos vícios dos parceiros peemedebistas de Lula no seu propalado governo de coalizão. Terá ele meios de salvaguardar a administração da voracidade dos políticos?