Título: Será que Bush vai dar um ditador ao Iraque?
Autor: Andrew Sullivan
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2006, Internacional, p. A18

A notícia estava escondida numa história do New York Times da semana retrasada, mas confirmou o que os cidadãos esclarecidos de Washington já vinham observando. O contexto é que a Casa Branca tem convidado pessoas de fora para discutir a estratégia no Iraque. Ao que parece, o novo chefe de gabinete Josh Bolten vem tentando romper o casulo intelectual onde o presidente reside confortavelmente. James Baker, conselheiro da família Bush, já foi chamado para resgatar a fracassada política para o Iraque.

Na semana retrasada, contudo, surgiu a nova pérola. Um anônimo "especialista em assuntos militares" participou de uma reunião informativa na Casa Branca e relatou: "Importantes funcionários do governo admitiram, conversando comigo, que consideram alternativas à democracia. Todos no governo estão bastante circunspectos, mas é possível perceber seu temor de que isso esteja se afastando da democracia." Realmente. O número de vítimas civis naquilo que agora só pode ser chamado de guerra civil do Iraque aumenta a cada mês. Os milhares de iraquianos inocentes mortos no último mês ofuscam as perdas civis no Líbano e Israel. A tentativa do governo de Nouri al-Maliki de suprimir a guerra sectária em Bagdá fracassou, o que exigiu a ampliação do contingente militar dos EUA na capital e portanto o abandono do coração da insurgência, Anbar, nas mãos do inimigo. O general John Abizaid, comandante das forças americanas no Oriente Médio, disse ao Senado neste mês que a violência no Iraque "provavelmente está no pior momento que já vi, particularmente em Bagdá".

No dia 16, apareceram mais estatísticas sombrias. O número de ataques a bomba à beira de estradas atingiu um recorde. Em julho, 1.666 "dispositivos explosivos improvisados" explodiram e 959 foram encontrados antes de ser detonados. Em janeiro, 1.454 bombas explodiram ou foram encontradas. Esta é a direção errada - e é seguida depois da instalação de um governo de unidade eleito.

Na semana passada, um funcionário anônimo do Pentágono disse à imprensa: "A insurgência tem piorado sob quase todos os ângulos, com os ataques dos insurgentes atingindo níveis historicamente altos. A insurgência conta com maior apoio público e claramente está mais forte em número de membros ativos e na capacidade de atacar do que em qualquer outro momento." Lembram-se do comentário de Dick Cheney de que a insurgência estava "agonizando"? Esta palavra agora tem tanta credibilidade quanto a negação, pelo presidente, da tortura como uma prática de interrogatório autorizada pela Casa Branca.

Chega um momento em que até os rígidos níveis de negação de Bush precisam curvar-se à realidade. Este momento pode ser agora. Por qual outro motivo ele estaria lendo a obra-prima existencialista de Albert Camus, O Estrangeiro, no Texas? Bush vem se perguntando por que os xiitas do sul do Iraque demonstram tanta ingratidão para com o homem que os libertou de Saddam.

Não parece ter-lhe ocorrido que uma ralé aterrorizada pelo assassinato sectário, pela inexistência do governo e pela quase anarquia pode sentir raiva do homem que a livrou ditadura, mas depois recusou-se a oferecer um grau mínimo de segurança. Assim, o neoconservador renascido e frustrado em Bush pode estar cedendo à facção dos falcões que dizem: "Danem-se." Esta facção conservadora nunca gostou do argumento neoconservador para a remoção de Saddam. Ela não gostava da idéia de construção de nação e não acreditava que os iraquianos seriam capazes de viver numa democracia. Queria remover uma ameaça de armas de destruição em massa, mas, acima de tudo, queria infligir terror no coração do inimigo mostrando o que o poderio militar dos EUA era capaz de fazer.

Depor Saddam, remover as armas, instalar um ditador protegido e deixar os escombros para trás: este era o plano para ganhar o jogo. Ele intimidaria os iranianos e deixaria um rastro militar suave. O plano tinha a marca de Donald Rumsfeld e ajuda a explicar muita coisa sobre a recusa obstinada do governo Bush de enviar mais tropas nos primeiros meses depois da invasão. Rumsfeld e Cheney bem podem ser os principais proponentes deste argumento. Ele é, obviamente, estúpido. Quando se lida com uma luta envolvendo gerações para eliminar o extremismo islâmico, a principal arma é a conquista da simpatia dos muçulmanos e árabes moderados.

Faz-se o contrário bombardeando um país, mergulhando-o no caos e então indo embora. Quando uma das maiores ameaças num mundo aterrorizado são os Estados falidos do Oriente Médio, por que criar outro no Iraque? Quando a unidade e a cooperação de inteligência do Ocidente são essenciais, por que promover uma estratégia que quase certamente dividirá os aliados e unirá todos os muçulmanos sob a bandeira do extremismo? Não se pode, contudo, desfazer o que já foi feito. Mas o governo Bush sabe que sua derrota no Iraque é crucial para seu legado e futuro. O interessante nas últimas pesquisas - feitas em meio à guerra Israel-Líbano e ao frustrado complô terrorista que fechou o aeroporto de Heathrow - é como o Iraque continua sendo mais importante para os americanos do que o tema mais geral do terrorismo.

O pesquisador John Zogby opinou: "Os números de Bush refletem principalmente o pensamento do país sobre a guerra no Iraque. E a maioria das pessoas concluiu que a guerra em geral não compensa a perda de vidas americanas. O terrorismo é uma questão importante para os americanos, mas, quando se trata de julgar a presidência de Bush, sua decisão baseia-se principalmente no Iraque."

O pessimismo sobre o Iraque tem aumentado em todas as frentes desde a morte de Abu Musab al-Zarqawi. Segundo a pesquisa Pew da semana retrasada, 63% dos americanos acham que os EUA estão "perdendo terreno" na prevenção de uma guerra civil no Iraque. Entre os republicanos, os números caíram 16% nessa questão só nos últimos dois meses. No que é ainda mais preocupante, uma clara maioria agora diz que Bush não é um "líder forte" nem "digno de confiança", duas qualidades fundamentais nas quais Bush outrora contava com ampla aprovação.

E a rejeição do ocupante da Casa Branca é mais forte que em qualquer outro momento desde a conquista republicana do Congresso, em 1994. Uma pesquisa da semana retrasada mostrou os índices de aprovação de Bush numa nova baixa de 34%. A hora da verdade se aproxima. Se os republicanos quiserem se recuperar até novembro de 2008, para não falar em novembro de 2006, terão de superar o Iraque. Terão de mostrar progresso ou oferecer alguma estratégia de vitória crível que não seja simplesmente mais do mesmo. Bush não tem uma. Os falcões que dizem "danem-se" têm. E estão ganhando impulso. Em breve, um ditador complacente apoiado pelos EUA poderá não parecer uma opção tão ruim na Mesopotâmia. E pressinto que Rumsfeld dirá a si mesmo que sempre soube disso.