Título: 'O Katrina mostrou um país despreparado'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2006, Internacional, p. A22

John Biguenet, contista e professor de literatura da Universidade Loyola, de New Orleans, afirma que os americanos ainda não entenderam o que aconteceu um ano após a grande catástrofe que se abateu sobre New Orleans. "O que sabem, provavelmente está errado", escreveu ele na semana passada em sua coluna no site do New York Times.

Um dado ignorado, por exemplo, é que, proporcionalmente, morreram mais brancos do que negros. "Dos 1.300 mortos, 50% eram brancos, segundo um levantamento recente da imprensa local", disse ele. "Como os brancos eram menos de 30% da população, sofreram uma proporção maior de perdas".

Segundo ele, essa explicação é importante não pela questão racial, mas porque mostra a escala da destruição, que atingiu quase todas as partes da cidade.

Biguenet deixou New Orleans com sua mulher antes da chegada do furacão. O casal voltou dois meses depois para começar a reconstruir sua casa inundada em Lakeview. Na sexta-feira, ele falou ao Estado.

Por que, em sua opinião, as pessoas não compreenderam até hoje a dimensão do que ocorreu em New Orleans?

Não há episódio semelhante na história americana. Não sabemos como falar a respeito e não sabemos como compreender o que aconteceu. Nunca antes uma cidade americana foi completamente abandonada, na esperança de que seus cidadãos retornariam. Esse é um elemento da história da catástrofe que os americanos não estão preparados para absorver e entender. As implicações de esvaziar uma grande cidade moderna são tantas que é muito difícil para as pessoas imaginarem o que aconteceu aqui.

O que elas não compreendem?

Não compreendem que aconteceram dois desastres naquele dia. Um foi um desastre natural - o furacão Katrina - que, na verdade, virou para leste antes de atingir terra e poupou a cidade. O lado perigoso de um furacão é o leste. Nós fomos atingidos pelo lado oeste do Katrina, o mais fraco. Alguns telhados foram danificados, árvores caíram, etc. Mas se tivéssemos sido atingidos apenas pelo furacão, todos teriam voltado para casa, a vida teria se normalizado em três dias e não estaríamos falando do Katrina. Mas sofremos também as conseqüência de um desastre causado por falha humana. E o fato de ter sido no mesmo dia do desastre natural, confunde as pessoas até hoje. A catástrofe não foi provocada pelo furacão. Ela resultou da incompetência do Corpo de Engenheiros do Exército, uma agência federal, que construiu diques inacreditavelmente defeituosos. As chapas de aço instaladas nos diques para conter as águas não chegavam sequer ao fundo do canal. E foi aí que os diques cederam. A água não passou por cima, passou primeiro por baixo dos diques em quatro pontos diferentes, antes de arrebentá-los.

O que já foi reconstruído?

Um ano depois, tudo o que temos é a promessa de que todas as partes dos diques que cederam ou foram afetadas serão remendadas, com os mesmos defeitos de antes. E, sem um compromisso de que New Orleans será protegida por um sistema de diques capaz de suportar um furacão categoria 5 (o mais grave na escala que mede a força de ciclones), as pessoas, os negócios e os investimentos não voltarão. Dos 550 mil habitantes, 300 mil ainda não voltaram e não creio que voltarão.

Em resposta a sua coluna no 'New York Times', vários leitores lembraram que quem escolhe morar em zonas sujeitas a inundações devem estar preparado para viver com as conseqüências.

Isso não altera o fato de que o governo construiu diques que falharam e destruíram 80% de New Orleans, matando 1.300 cidadãos. Vivemos na foz do maior rio dos EUA, pelo qual passa metade do petróleo e do gás consumido pelos americanos. Não vivemos num balneário. New Orleans ocupa posição estratégica. É o segundo maior porto americano do Atlântico. Não estamos aqui porque gostamos do clima.

A cidade continua vulnerável?

A probabilidade de a mesma coisa repetir-se é pequena e não está num furacão, mas num ataque terrorista ou acidente industrial, algo que torne uma cidade inabitável por um período de um ou dois meses. Com exceção de Chernobyl, na Ucrânia, não se tem esse tipo de experiência desde a 2.ª Guerra. Mas, considerando o mundo em que vivemos, não creio que seja impossível que isso aconteça em outro lugar. O problema é que o desastre, quatro anos depois do 11 de Setembro, mostrou o país totalmente despreparado para enfrentar uma emergência em grande escala. A julgar pelo ritmo da reconstrução de New Orleans, não creio que o país tenha aprendido muito.

Um ano depois, como está New Orleans?

No French Quarter e nas áreas ao longo do Rio Mississippi, a aparência é de que nada aconteceu em New Orleans um ano atrás. Vista daí, continua tão linda e vibrante quanto antes. Mas isso representa só 20% da cidade. Os outros 80%, a cidade atingida por uma inundação catastrófica, se recupera muito lentamente.

Por quê?

Por falta de liderança eficaz em todos os níveis, do municipal ao federal.Tivemos falhas repetidas em tomar decisões capazes de liberar os recursos disponíveis, que permitiriam a reconstrução. Há grande hesitação em fazer qualquer tipo de plano em larga escala. Em vez disso, as autoridades pediram aos bairros para apresentar seus planos. E não há nenhuma coordenação.