Título: Ruas de Cuba guardam futuro da ilha
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2006, Internacional, p. A23
Na outrora deteriorada Plaza Vieja, no centro velho de Havana, uma loja européia de roupas masculinas abriu suas portas luxuosamente renovadas, a alguns metros de uma nova e atraente microcervejaria austríaca. A loja tem no estoque roupas casuais e esportivas de alto padrão. Na cervejaria, os balcões reluzentes, a iluminação local e a clientela de turistas e de cubanos despreocupados lembram mais uma região festiva do Caribe do que um Estado socialista unipartidário.
Alguns quilômetros mais a oeste, perto dos luxuosos hotéis à beira-mar, os cubanos da elite vivem em condomínios modernos e envidraçados. Ao longo do Malecón - a famosa esplanada à beira-mar da cidade -, um cartaz anuncia a chegada do novo ocupante: um novo e elegante barzinho de petiscos.
Em 31 de julho, quando o presidente Fidel Castro foi internado num hospital com sangramento no intestino, após transferir o poder provisoriamente para seu irmão Raúl, circularam rumores mundo afora sobre o destino político e econômico da ilha. Contudo, nas ruas de Havana, já se pode ter um vislumbre de um possível futuro pós-Fidel.
Esses instantâneos deixam impressões controversas. Em muitos aspectos Cuba parece ter se congelado nos anos 50. A maior parte das antigas e elegantes residências da era colonial da Velha Havana está com as pinturas descascadas, esquecidas. Seus moradores empobrecidos se afundam no vão das portas e se abanam com as mãos, para afastar o calor. Pelas ruas passam carros americanos da década de 20, muitos deles transformados em táxis.
O Granma, jornal oficial do Partido Comunista, continua um veículo melancólico de propaganda com sensibilidade gráfica do tempo da Guerra Fria. Slogans socialistas e imagens de Che Guevara ainda são vistos nos edifícios públicos, junto a cartazes com a inscrição ¿Longa vida a Fidel - 80 anos mais¿.
Esses mesmos slogans e imagens são vendidos em forma de camisetas, boinas, pôsteres e outros apetrechos populares. Nos corpos dos pálidos turistas de meia idade eles parecem tão revolucionários quanto o logotipo da Nike ou da Coca-Cola.
Apesar de décadas de previsões de estudiosos de que um eventual declínio ou a substituição de Fidel provocaria uma crise de governo e caos nas ruas, a convalescença do velho guerreiro parece ter produzido mais calma do que pânico.
Nos arredores de Havana é evidente o impacto do investimento estrangeiro e das joint ventures com o governo, que Fidel começou a apoiar após a ilha perder seu velho patrocinador soviético no início da década de 90. Os prédios barrocos que foram restaurados meticulosamente e abrigam a loja de roupas e a microcervejaria são parte de um projeto para recuperar o que o governo chama de patrimônio arquitetônico do país, disse um morador.
Os pedestres que param para admirar as belas fachadas podem ouvir a música cubana tradicional vinda dos bares e restaurantes da moda. Numa noite recente, um músico falava sobre a próxima viagem ao exterior que sua banda faria.
A poucas quadras, na Plaza de la Catedral, turistas bebem mojitos (coquetéis de rum) sentados nos cafés, ouvem as bandas de rua e observam as idosas fumando charutos. Perto da praça, na Callejón del Chorro, há cartazes e impressos de uma gráfica do governo que oferecia de tudo, de paisagens à beira-mar até demônios retratando o capitalismo neoliberal.
Mas capitalismo nem sempre é uma palavra feia na Cuba moderna. No centro, turistas e cubanos passam por um número crescente de hotéis e lojas vendendo cosméticos, roupas esportivas e outros produtos.
Na Plaza de Armas, operários trabalham sob o sol ardente para assentar as pedras que devem dar à área histórica um visual mais autêntico. Um trio canta uma versão da Guantanamera aguardando um trocado dos turistas, enquanto numa banca de livros usados, pode-se encontrar uma coleção de poemas de Jose Martí ao lado do livro de receitas de coquetéis favoritos de Ernest Hemingway.
Cuba pode estar culturalmente interditada para os EUA, mas está claramente conectada com outras partes do mundo, especialmente Europa, Canadá e América Latina.
As obras de arte contemporâneas no Museu Nacional de Belas Artes refletem um conhecimento profundo da arte global moderna. Enquanto turistas se aglomeram para ouvir as músicas da velha guarda, popularizadas pelo Buena Vista Social Club, garotos e taxistas gravitam em torno dos grupos de hip-hop e de rhythm & blues.
Um pintor que expõe suas telas abstratas na frente de uma loja e já teve trabalhos expostos na Europa e EUA admitiu que suas pinturas viajam o mundo mais do que ele. Mas disse estar grato por ter sido incluído numa recente mostra oficial.
¿Após 40 anos¿ sob o regime de Fidel, ¿há medo do que está por vir¿, disse ele, que não quis ser identificado. Ele acredita, porém, que a intranqüilidade é mais uma inquietação sobre o desconhecido do que um medo específico do que o próximo governo poderá ou não fazer.
As inclinações capitalistas de Cuba podem colidir com a linha do partido, mas isso não é novidade. O balneário de Varadero, a leste de Havana, é o maior do mar do Caribe e desde os anos 70 atrai centenas de milhares de turistas estrangeiros. Na verdade, a economia cubana pode ser vista como duas: uma, privilegiada, para turistas; e outra para os demais.
Duas imagens da cidade se destacam. Uma é a do cinema do centro repleto, exibindo o filme El Benny, sobre o grande cantor cubano Benny Moore. A platéia, quase só de cubanos, aplaude e assobia a cada piada picante ou apresentação espalhafatosa do cantor numa boate dos anos 50, numa afirmação coletiva da cultura e da identidade nacional. A outra imagem é a de um velho sujo e descalço, deitado na calçada do lado oposto do Museu da Revolução. Qual é o futuro de Cuba e qual é seu passado?