Título: Decreto de Evo Morales está virando anedota
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2006, Economia, p. B17

No momento de sua assinatura, três meses atrás, o decreto de nacionalização dos hidrocarbonetos foi apresentado, retoricamente, como um encontro da Bolívia com sua história. Se isso era verdade, até agora o país só perdeu. Em plena reeleição, o governo Luiz Inácio Lula da Silva nem quer ouvir falar de aumentar o preço do gás, principal reivindicação boliviana.

O decreto pretendia deslocar as empresas estrangeiras do negócio e pôr a estatal YPFB no centro da produção e distribuição de gás. "Mas como é possível encontrar bons funcionários pagando salários de US$ 1,6 mil num mercado global de salários dez vezes maiores?", pergunta Luis Carlos Kinn, empresário que atua como conselheiro do governo boliviano.

Por falhas de gestão, de vez em quando tem faltado óleo diesel em determinadas regiões do país montanhoso e de transporte difícil. Outro problema é que, por erros jurídicos descobertos no texto do decreto, o governo se encontra impedido de utilizar recursos de fundos de pensão, como pretendia, para pagar despesas operacionais da estatal. São tantas trapalhadas que o tema já virou anedota em determinados círculos do país.

"Acho que deveríamos pedir ajuda a Hugo Chávez para invadir o Brasil e resolver o assunto", ironiza Carlos Miranda, antigo ministro de Hidrocarbonetos, numa referência à influência do presidente da Venezuela nos assuntos internos do país. "Vamos de blindado até o Rio de Janeiro, onde me ofereço para tomar conta das garotas de Ipanema, da feijoada e da caipirinha."

Para Miranda, o governo errou ao partir para um gesto de confronto quando poderia ter obtido ganhos idênticos com uma proposta técnica. "Bastaria ter aumentado os impostos", diz, referindo-se ao reforço financeiro que o governo de La Paz pretendia com o aumento no preço do gás - uma bolada de meio bilhão de dólares por ano, num país onde 60% da população vive abaixo da linha da pobreza.

SUBSOLO RICO

Dona de um subsolo considerado um dos mais ricos do planeta e uma história de crises prolongadas, o gás é a maior esperança de redenção da Bolívia.

Na semana passada, centenas de indígenas guaranis decidiram ocupar uma estação de transmissão de gás para o Brasil, exigindo US$ 9 milhões como "direito de passagem", uma espécie de pedágio pela travessia do território onde vivem.

Em si, a cobrança dos "direitos de passagem" não costuma ser contestada. Assessores do governo dizem que muitos fazendeiros brasileiros, que também abrem suas propriedades para a passagem de gás, recebem uma recompensa a título de indenização e o pedido dos guaranis deveria ter sido acertado há mais tempo. "Isso não foi feito antes porque eram índios bolivianos", acusa um assessor do Ministério de Relações Exteriores.

O presidente Evo Morales preferiu uma ação política e a ocupação da estação de transmissão de gás ajuda a entender o por quê. Evo é um líder sindical, que cresceu com atitudes de desafio à política de Washington de tentar extinguir o plantio das folhas de coca.

O partido do governo, Movimento ao Socialismo (MAS), é um condomínio de correntes de esquerda habituadas a encaminhar reivindicações com métodos de ação radicais, como ocupações de edifícios públicos e bloqueios. A influência da ditadura bananeira de Fidel Castro é marcante e também do petrogoverno da Venezuela de Hugo Chávez.

O decreto da nacionalização assegurou a Evo Morales a maioria das cadeiras na Assembléia Constituinte, eleita pouco depois, ainda que a vantagem não tenha chegado a 70% dos votos, como o governo sonhava. O problema é que até agora não há luz financeira no fim do túnel de negociação.

Em La Paz, tem-se como certo que o governo brasileiro, principal acionista da empresa, não vai se manifestar sobre o pleito boliviano antes da contagem dos votos da eleição presidencial, pois Lula sabe que a concessão pode retirar uma margem de votos decisiva para uma eventual vitória no primeiro turno. "Não se falará de preços enquanto a eleição não estiver resolvida", diz Carlos Morales.