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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/09/2006, Notas e Informações, p. A3

Representantes dos Estados Unidos, da União Européia e de mais de duas dezenas de economias em desenvolvimento decidiram marcar mais um "prazo final" para salvar a Rodada Doha. O anúncio foi feito no Rio de Janeiro pelo diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy: o novo limite é o fim de março do próximo ano. Desta vez o prazo pode ser final, mesmo porque, se for perdido, as discussões serão atropeladas por eleições, pela discussão da nova lei agrícola americana e pelo fim do mandato negociador do presidente dos Estados Unidos. Depois de março de 2007, ninguém terá a mínima segurança para prever quando as negociações poderão ser retomadas e em que condições.

A discussão comercial do último fim de semana, no Rio, foi programada inicialmente como reunião do Grupo dos 20 (G-20), que congrega Brasil, China, Índia, México, Argentina e várias outras economias em desenvolvimento das Américas, da Ásia e da África. Foram em seguida convidados o negociador da União Européia, Peter Mandelson, a representante comercial dos EUA, Susan Schwab, e o diretor-geral da OMC.

O fracasso da rodada será um enorme fiasco político para todo o mundo. Em dezembro de 2001, ministros de mais de 140 países lançaram em Doha, no Catar, a primeira negociação comercial comprometida oficialmente com os interesses das economias em desenvolvimento. A reforma do comércio agrícola deveria estar no centro desse projeto, mas outros objetivos dessas economias seriam também levados em conta. Países pobres teriam acesso mais livre a certos medicamentos e para isso seria permitida, em algumas circunstâncias, a quebra de patentes. Além disso, deveria valer nas negociações o tratamento mais favorável ao mundo em desenvolvimento.

Os compromissos de Doha foram facilitados pela reação internacional aos atentados de 11 de Setembro daquele ano. Um novo acordo de liberalização comercial, sem precedente na amplitude e nas ambições, seria a resposta adequada ao terrorismo, segundo se proclamou na ocasião.

As grandes bandeiras levantadas naquela conferência foram logo arriadas. Os governos dos Estados Unidos e da União Européia resistiram a concessões significativas no comércio de bens agropecuários. Os americanos começaram em pouco tempo a renegar o entendimento consagrado em Doha sobre as patentes de remédios.

No caso da agricultura, americanos e europeus voltaram ao jogo que haviam praticado na Rodada Uruguai, encerrada em 1994. Ficaram cobrando uns dos outros a iniciativa das mudanças mais significativas na política de subsídios e de barreiras. Na época, o acordo agrícola foi muito limitado e, mesmo assim, acabou sendo descumprido pelas maiores potências. O processo do Brasil contra os Estados Unidos, por causa dos subsídios ao algodão, foi uma reação a esse descumprimento.

Na atual rodada, as maiores potências, ao mesmo tempo que resistiram a uma reforma significativa do comércio agrícola, cobraram das economias em desenvolvimento maiores concessões no comércio de produtos industriais e nas áreas de serviços e propriedade intelectual. Assim, além da queda-de-braço entre Washington e Bruxelas por causa da agricultura, houve também o impasse entre ricos e emergentes em torno da abertura para aqueles dois setores.

Mas a situação geral é ainda mais complicada, porque nem sequer há acordo entre os membros do G-20 a respeito de quanto podem ceder no comércio agrícola. Alguns países, como Brasil e Argentina, têm condições de enfrentar uma competição aberta nesse campo, mas outros parceiros, como Índia e China, não se mostram dispostos a abrir seus mercados.

Também há desacordo entre os emergentes a respeito das concessões nas áreas de produtos industriais e de serviços. Em outras palavras: os obstáculos efetivos são muito maiores do que revela a maior parte do noticiário. Todos, portanto, terão de ceder muito mais, se quiserem de fato concluir a rodada até março. Não será uma missão impossível, mas muitíssimo difícil.

Na reunião deste fim de semana no Rio de Janeiro, não houve qualquer novidade que alterasse para melhor esse cenário que descrevemos.