Título: Incerteza e pânico - governo em crise
Autor: Nicodemo Sposato Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/07/2006, Espaço Aberto, p. A2

A omissão e a ineficiência do Estado para que a lei seja observada e cumprida submetem a população aos interesses, nem sempre legais, de grupos e entidades particulares. Acima da lei, entidades denominadas "associações" e "administradoras" praticam verdadeiros achaques contra a população. Agindo em substituição ao Estado, afrontam a democracia e o Estado de Direito. Desfraldam a bandeira do bem comum, mas, visando lucros fáceis e sempre crescentes, se dedicam apenas e tão-somente à consolidação do Estado paralelo.

Submetida a uma confiscatória massa de impostos federais, estaduais e municipais - taxas, tarifas, mensalidades, rateios, multas moratórias, além de outras criativas formas de, dissimuladamente, embutir acréscimos nas contas - a população brasileira, que também enfrenta a voracidade dos bancos, das financeiras, das instituições de ensino, dos planos de saúde e, agora, de associações e administradoras, convive com a incerteza e o pânico, pois, sufocada, não tem de quem se socorrer para equilibrar as suas despesas sempre crescentes às suas parcas e minguantes receitas.

O Estado, responsável pelo que é público - bem-estar, saúde, educação e segurança -, mostra-se fraco, incipiente e prestes a sucumbir. São tais os desencontros e os desmandos a ponto de o próprio Estado erigir-se em ferramenta para que entidades e grupos se apoderem dos bens públicos, que são patrimônio do povo, e, assim, submeterem os cidadãos aos seus interesses, como no caso de associações que, mediante alegadas prestações de serviços, se apoderam do mais importante bem das famílias, ou seja: as suas propriedades.

Para justificar a sua perniciosa ação se utilizam do argumento da falência do Estado. "Já não tem condições nem recursos para atender aos anseios e às necessidades da população", afirmam. O que se constitui num engenhoso artifício para realizar serviços, criar novas obrigações e, em contrapartida, para que possam, em nome e por delegação do poder público, obter lucros. Lucros fabulosos e sempre crescentes.

Servindo-se da violência e do medo que hoje alcançam a maior parte da população, cercam bairros, loteamentos, fecham vias públicas, praças e áreas municipais, constroem portarias, contratam porteiros, serviços de vigilância, etc., e passam à exploração. Mais sério, porém, é o fato de tentarem mudar o regime jurídico das propriedades, das obrigações e da relação entre associados e associação, numa visível afronta à lei e à Constituição federal.

A ação e a engenhosidade do Estado paralelo só se tornaram viáveis em razão da conivência das autoridades (prefeitos e vereadores), do desinteresse do Ministério Público em fiscalizar o cumprimento da lei e do Poder Judiciário, que, além da tolerância - sabe-se lá militando em que direção -, não atentou para a flagrante ilegalidade da transformação de obrigações de direito pessoal para as de direito real, ensejando, assim, a vinculação de propriedades às simples mensalidades associativas. No município de Vinhedo (SP), a ação do Ministério Público, felizmente, culminou com a prisão do ex-prefeito Milton Serafim e dos secretários Alexandre Tasca e Marcos Ferreira Leite, na cassação dos direitos políticos, multa de R$ 5,5 milhões e devolução de 46 imóveis que a "ex-autoridade" havia "ganhado".

O Estado paralelo se agiganta. Para sua consolidação a ministra Fátima Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 490.419 - SP), nos idos de 2003, deu forte e importante contribuição. Deixando de observar garantias constitucionais do artigo 5º - direito de propriedade, direito de livremente contratar, direito de livremente se associar e que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" -, sentenciou: "O proprietário de lote integrante de loteamento aberto ou fechado, sem condomínio formalmente instituído, cujos moradores constituíram sociedade para prestação de serviços de conservação, limpeza e manutenção, deve contribuir com o valor correspondente ao rateio das despesas daí decorrentes, pois não se afigura justo nem jurídico que se beneficie dos serviços prestados e das benfeitorias realizadas sem a devida contraprestação."

Se algumas pessoas passam a prestar serviços, isso lhes dá o direito de transformar a propriedade única e indivisa em parte de um condomínio? Se podem agir como poder púbico e estabelecer cobranças, será que ainda valem a escritura e o seu registro? Será que se afigura justo e jurídico pagar IPTU e, além de toda uma gigantesca massa de impostos, também responder por despesas realizadas por associações que os proprietários não contrataram, não querem e não desejam?

Se for esse o caso, realmente a função do Estado acabou: revogou-se a Constituição e vamo-nos juntar ao "alemão" (como classifica uma alta autoridade judiciária o representante de facções criminosas que tutela bairros e vilas), pagando o que quiserem e o que for necessário. Será que só assim poderemos sobreviver, ainda que sejam crescentes os roubos, a corrupção e as dificuldades? Para quem paga impostos que já chegam à casa dos 40% do produto interno bruto, aumentar para 50% ou 60% e pagar mais alguns "pedágios" pode afigurar-se justo e jurídico.

É, por um lado, um passo definitivo para a instituição do Estado paralelo, e, por outro, o reconhecimento da falência do Estado e, como sempre, mais um gigantesco peso nas costas dos cidadãos.