Título: O reacionário veto de Bush
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/07/2006, Notas e Informações, p. A3
Fiel às suas convicções - ou, diriam os céticos, à direita religiosa que constitui o núcleo duro do que lhe resta de apoio político entre os americanos -, o presidente George W. Bush cumpriu a promessa de vetar o projeto que liberaria o financiamento federal a pesquisas com células-tronco embrionárias. Vitoriosa na Câmara dos Representantes, a proposta passou terça-feira também no Senado por 63 votos a 37. Dezenove republicanos e todos os democratas menos 1 apoiaram a medida. Na população, quase a metade dos que se declaram republicanos (e 2/3 dos democratas) defende a destinação ampla de verbas públicas para tais estudos. A Casa Branca só financia aqueles realizados com linhagens de células embrionárias criadas antes de 9 de agosto de 2001, quando Bush anunciou a sua política para o setor.
Com o veto, o presidente alegou que desestimularia a deliberada produção de embriões humanos para fins científicos. Fingiu ignorar o fato de que a lei, se aprovada, autorizaria a manipulação apenas de embriões destinados ao descarte em tratamentos de esterilidade. Tampouco permitiria a chamada clonagem terapêutica, a criação de células-tronco a partir das células de portadores de doenças degenerativas para possíveis tratamentos personalizados. No Brasil, a Lei de Biossegurança também restringe as pesquisas a células de embriões congelados em clínicas de reprodução assistida, por não terem sido transferidos para o útero da paciente, e proíbe a clonagem terapêutica.
A grande maioria dos especialistas, em toda parte, discorda da argumentação ético-religiosa para a limitação parcial ou total dessas experiências de ponta nas ciências biomédicas - a alegação de que o uso de embriões, mesmo para o combate a moléstias devastadoras e incuráveis, representa a eliminação de vidas humanas. Para os biólogos e geneticistas em geral, vida humana alguma se perde com a destruição de um blastocisto, o aglomerado de uma centena de células ainda indistintas nessa fase do desenvolvimento embrionário. Elas são removidas no quinto ou sexto dia, o mais tardar, quando o embrião, "do tamanho do ponto no final desta frase", ainda não possui órgãos, muito menos um sistema nervoso que lhe permitisse experimentar sensações.
Cultivando as células-tronco - das quais resulta a miríade de células especializadas do organismo -, os pesquisadores acreditam que poderão transformá-las naquelas que substituirão as dos tecidos cujas lesões se manifestam como diabete, mal de Parkinson, doença de Alzheimer e outras enfermidades cruéis e incuráveis. Muitos cientistas, e não só os agnósticos e ateus, afirmam que a vida humana, caso único na Terra, não começa com a fecundação: o que a define é a autoconsciência, proporcionada por um sistema nervoso funcional. Por isso também se diz que a vida cessa quando cessa a atividade cerebral, mas a vida humana cessa quando o ser humano perde a consciência de si.
Ainda que assim não fosse, "ver pessoas morrendo de doenças como a de Parkinson", disse no Capitólio o senador republicano Gordon Smith, "infunde no coração o desejo de errar a favor da saúde e da esperança". Os biólogos que se opõem ao uso de células embrionárias afirmam que as células-tronco adultas podem ter a mesma serventia. Muitos outros, porém, mencionam os problemas, incomparavelmente maiores, envolvidos no seu isolamento e na sua multiplicação. Divergências filosóficas ou científicas à parte, uma questão sobressai quando estão em jogo as leis que regulam a busca e a aplicação do conhecimento nas sociedades liberais, em que Estado e religião se situam nos lados diferentes de uma fronteira intransponível.
No ano passado, quando o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, católico fervoroso, pediu ao Supremo Tribunal Federal que declarasse a Lei de Biossegurança inconstitucional por atentar contra o direito à vida, este jornal comentou em editorial: "Quando uma autoridade pública representa a sociedade brasileira, há que levar em conta que atua em esfera eminentemente civil, laica, sendo-lhe descabido, nessa função, qualquer laivo de proselitismo religioso (...). No direito brasileiro, a pessoa física só surge em razão do nascimento com vida (...). As melhores tradições jurídicas e republicanas não incluem a submissão a visões de natureza puramente confessional." O mesmo se aplica aos Estados Unidos. E o mesmo leva a deplorar o retrocesso imposto por Bush à ciência na livre nação americana.