Título: 'Político que não é ator não transmite nada'
Autor: Julio Maria
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/09/2006, Nacional, p. A8

Dois dias antes de divulgar sua polêmica Carta aos Eleitores do PSDB, com críticas ao PT e a seu próprio partido, o hoje escritor Fernando Henrique Cardoso, autor de A Arte da Política - A História que Vivi, recebeu a reportagem na sede do Instituto FHC. Sem o documento em mãos, esbarrou em temas que citaria nele. E fez um estreito e curioso paralelo entre a política e as artes cênicas. A entrevista foi publicada originalmente, segunda-feira, no Jornal da Tarde.

Boa tarde, doutor.

Ninguém me chamou de doutor na vida. Isso nunca pegou.

As pessoas o chamam ainda de presidente?

Sim, presidente ou professor.

Não é estranho?

Não, porque sou presidente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, então penso que é isso.

O livro A Arte da Política é seu exorcismo?

Sem dúvida. Eu sempre anotava minhas experiências quando estava na Presidência, sempre tive o costume de registrar. Tinha de fazer um esforço não só para dizer o que sinto, mas para ver no que o Brasil mudou. Me cuidei muito para que o livro não fosse apologético, que não fosse usado para enaltecer o que eu fiz.

Sua história parece mais interessante no livro do que nos anos em que a viveu?

Sim, acho que sim. Quando estava vivendo a história a tensão era muito grande, as decisões eram muito rápidas e, por mais que tentasse me afastar, estava ali dentro. Não tinha capacidade emocional para desfrutar o que fazia. Depois que saí, olhei com distância, mas com olhar mais penetrante. O jornalista Elio Gaspari diz que os bons diários são os diários publicados muitos anos depois. Ele tem razão. Tenho anotações que não quero publicar enquanto estiver vivo, não quero. É melhor deixar passar o tempo para não ser lido sob uma ótica que não será adequada.

O cruel nesse negócio de tempo é que ele mostra o que as pessoas deveriam ter feito mas não fizeram.

Sem dúvida. Ulysses Guimarães dizia que o tempo não perdoa quem não sabe trabalhar com ele.

O que o senhor deveria ter feito quando era presidente do Brasil?

Eu deveria ter mudado o câmbio em fevereiro de 1998. As pessoas dizem que não mudei por causa da reeleição. Não era isso. Quando se está em um turbilhão daquele, nem se está pensando em eleição. Há sempre uma espécie de amesquinhamento e os que estão convivendo com você sempre o lêem de forma distorcida. Quando passar o tempo a leitura vai ser mais equilibrada. Nunca vai ser a final, porque sempre se refaz a história. Veja agora essa polêmica a respeito desses novos livros sobre Lênin e Stalin. No momento em que a idéia de democracia é muito forte, a história deles é relida sob nova perspectiva.

Fazer política é fazer arte?

Sim, uma arte em que você tem de encontrar soluções que não se repetem. A ciência tem soluções exatas, como a Lei da Gravidade. Na política não há isso. A política lida com o novo, só existe quando se inova. E quando você cria você faz arte.

Logo, um político é um ator.

Não tenha dúvida. E se não for um ator não transmite nada, não será nada. Em uma sociedade como a nossa, de 125 milhões de eleitores, você tem de incorporar alguma idéia, algum sentimento, alguma tendência. E fazer isso como ator, expressar isso de alguma maneira. Muitas vezes, quando se está na televisão, você pode ganhar ou perder por um nada. Uma frase mal posta, um jeito de falar, uma gesticulação, um movimento de corpo errado. Isso requer capacidade de representar.

Há bons e maus atores...

Sim, e há bons atores de diferentes espécies. Há atores de circo muito bons e há atores sóbrios muito bons. Paulo Autran, por exemplo, é um ator sóbrio, mas um grande ator.

Geraldo Alckmin é um ator ruim?

Depende das circunstâncias. A mensagem não depende só de quem a emite. É preciso que o receptor esteja aberto para recebê-la e, às vezes, o público não está aberto para isso. Outras vezes o público está aberto, mas o político não tem habilidade para transmiti-la. No caso do Alckmin, ele tem um estilo sóbrio que se contrapõe ao estilo do presidente Lula, mais popularesco, que coloca tudo quanto é boné que aparece na sua frente. O Alckmin fazendo isso seria um desastre. Então você tem que ver que o Alckmin tem de se contrapor ao Lula. Aqui a política é diferente do teatro. No teatro o povo vai assistir a uma peça e já espera um certo desempenho do artista. Na política você tem de emitir uma mensagem para um público que não foi te procurar e que você não conhece.

O senhor vê horário político?

Nem sempre, não via muito nem quando era candidato. Eu sempre dizia aos meus marqueteiros que o importante nesse negócio de televisão é se fazer uma conversa com o País. O candidato tem de contar uma história e essa história tem que ter uma espécie de mito no qual um é bom e o outro é mau. É isso. Meu nome é esse e temos tais problemas. Eu resolvo assim e o outro não faz nada. Fácil de falar e difícil de fazer na televisão. Quando fui competir pela primeira vez com o Lula, ele já era mito. Mas eu tinha um ícone que era o Plano Real. Então eu contava a história da estabilidade da inflação. 'Vejam, mudei a vida de vocês, o salário está melhor, não sei o que, tal e coisa'. Já em 1998 foi muito mais difícil porque eu era presidente na crise. Alguns diziam que meu slogan deveria ser 'Quem venceu a inflação vai vencer o desemprego'. Mas a inflação pode até ser brecada pelo governo, o desemprego não. Então mudamos e ficou 'Estamos em crise. Quem é capaz de tirar o Brasil da crise? Eu ou ele?' Não neguei a crise. Isso então é a história que você cria em TV, mas essa história tem que ter o mínimo de verossimilhança porque o povo não é bobo, não compra gato por lebre. Agora, por exemplo, dizem que o Lula vai ganhar votos por dar a Bolsa-Família para todo mundo. As pessoas estão melhorando de vida com sua bolsinha, não é um voto irracional. Do ponto de vista histórico pode ser, do ponto de vista de cada um não é. Como vamos (o PSDB) lidar com uma coisa dessas? É muito difícil.

O outro será sempre o mau.

O outro é sempre o mau e você é sempre o bom, capaz de fazer o bem.

A televisão faz presidentes?

Não sozinha. A televisão em política é como um despertador. Você não acordou ainda até que toca aquela campainha. Aí pensa se vai dormir mais, dormir menos, se levanta, toma banho. Ela dá um choque. Antes da TV a população não está ligada à política, é um mundo distante delas. A pesquisa de opinião antes da televisão não é retrato de nada.

Donos de TVs fazem presidentes?

A televisão no Brasil é pouco competitiva. Há uma concentração de audiência em um ou dois canais. Se durante um ano houver uma presença mais positiva de uma pessoa em um certo canal, você terá uma vantagem enorme. A mídia escrita não tem a mesma força, mas também tem. O Lula, em um determinado momento, perdeu a classe média por causa da mídia escrita.

A mesma que fez o senhor ganhar a classe média?

É a mesma coisa. Quando se está no cargo eles são obrigados a noticiar sua presença e isso acaba criando uma situação favorável. Minha diferença (com relação ao atual governo) é que nunca cobrei nada da imprensa, não fazia patrulhamento para saber como as coisas saíam.

Nunca ligou para uma redação?

Não, pode perguntar ao doutor Ruy Mesquita (diretor) no seu jornal. Jamais liguei para ele, jamais.

O que o sr. costuma ver na TV?

Sou um mau consumidor, vejo jornais da CNN, BBC. Não vejo filmes em televisão, não gosto.

A paixão do brasileiro é a novela.

Quando saí de férias assisti a vários capítulos de Belíssima. Sabe por que não vejo sempre? Porque a estrutura da novela se repete muito. Você vê um capítulo ou vê dez capítulos e é mais ou menos a mesma coisa. Isso me faz perder o interesse intelectual, só fica o estético. Há bons atores, sei que ela é muito bem feita e que discute temas que às vezes são tabus, como homossexualismo, religião. Não sou contra, mas é um mundo edulcorado. A quantidade de pessoas bonitas que se vê nas novelas, por exemplo, é assustadora! Isso não corresponde à nossa realidade.

Os artistas sempre tiveram uma atuação muito firme nos períodos de crises políticas. Por que todos se calaram?

Nos últimos 30 anos aconteceu no Brasil uma espécie de transferência da boa consciência para um partido só. A pessoa, para não ter muito trabalho, fazia do PT o depositário de seus sonhos. Houve uma certa indulgência e falta de capacidade crítica dos intelectuais para questionar 'mas é isso o mundo atual?', 'isso é o que se precisa neste mundo?'. Quando veio a crise recente, essa gente ficou amedrontada porque pegou neles. Li um artigo recente do Luis Fernando Verissimo em que ele dizia que iria votar no Lula porque estava acostumado. Ele nem sabe mais por que é que vai votar no Lula, não tem argumentos para isso a não ser a rotina. Ora, o intelectual não pode se conformar com a rotina, de abrir mão da capacidade de refletir. Pode ser com relação ao PT, ao Lula ou a mim, mas você tem que refletir. Eu continuo votando porque sempre votei? Não é um intelectual, não está à altura de ser a expressão mais sofisticada de um sentimento.

O sr. nunca esteve perto dos movimentos musicais dos anos 70?

Eu acompanhei tudo de perto, minha campanha de 1978 teve o refrão feito pelo Chico Buarque. Foi curioso o Tropicalismo nascer muito antipaulista, tinha uma certa visão da USP como se fosse a fortaleza do establishment. Era interessante.

O sr. não viveu sua fase rock and roll?

Não, aí não. Minha formação pessoal foi muito rigorosa. Meu pai era general militar, era de esquerda, liberal, mas venho de uma família de classe média tradicional. Avós todos muito establishment. Nunca fumei, nem bebi. Fui beber só depois que me casei. E quando entrei para a universidade, só estudava.

Quando um homem se intelectualiza desde muito cedo, como o senhor, ele não corre o risco de passar a habitar um mundo que na prática não existe? Já sentiu isso?

Em parte sim, mas fui criado assim, minha realidade é essa. Por outro lado nunca fui um intelectual no sentido de me colocar em uma torre de marfim. Sou bastante simples, me relaciono com todo mundo e com muita simplicidade. Nunca fui pobre, e quem nunca foi pobre não pode ter a experiência vital de um pobre. O pior é quando você se fecha, quando não se expõe. Conheci muitos intelectuais, gente de muito valor, que viraram estátuas muito cedo, aceitaram a sua importância. Quando isso acontece, o sujeito está perdido. Aí ele não ouve mais o outro, não ouve ninguém, não se abre, não ouve críticas. Nunca fui assim.

As periferias têm grupos sociais como o dos rappers sempre muito distantes dos governantes. O senhor nunca chegou até eles?

Não chego até eles não por ser um intelectual, mas por ter sido presidente. Isso dá uma distância. É um mundo diferente do meu, mas tenho canais que me permitem senti-lo. Chegar a eles é mais difícil por eu ter sido presidente. Os partidos políticos do Brasil estão mesmo muito distantes dessa realidade. Todo mundo se apaixonou pelo campo, sabem tudo de campo e nada sobre cidade. A vida urbana na periferia, na pobreza... A coisa que mais me impressionou nos últimos tempos foi o relatório que li do Marcola. A forma como ele inverteu a relação e ficou mais à vontade do que os deputados. E quando ele diz: 'Como eu atendo o celular aqui? Vocês sabem, a corrupção. Ou vocês não praticam isso aí?' É uma frase devastadora.

O que faz um homem querer ser presidente da República?

Muitas coisas. Em primeiro lugar, acho que você só vai ser presidente se outros quiserem que você seja. Os autocandidatos não vão longe. Eu era ministro da Fazenda em 94 e começaram a me pressionar. Eu não queria, até que percebi que o presidente Itamar Franco estava ficando sem candidato. Então concordei porque queria fazer a estabilização da economia.

O que faz um homem não querer ser presidente da República?

Sempre falei que não sairia candidato neste ano e ninguém acreditou. Presidente pra quê? Já fui duas vezes. Por que querer ser de novo? O Alckmin foi três vezes à minha casa para dizer 'Se o senhor quiser ser presidente, eu...' E era sincero. Mas havendo pessoas boas mais jovens do que eu, por que eu, com 75 anos, vou querer ser presidente? Será que, se ganhasse, teria energia? Eu fiz tudo que poderia. Fui presidente a fundo, todo o tempo. E sei o que isso significa, o que custa de energia física, intelectual e espiritual. Se entrasse com 75 anos, terminaria com 80. O Brasil é um país jovem.