Título: O Oriente Médio e o discurso de ódio
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

São indizíveis, adverte a Carta da ONU, os sofrimentos da guerra. Atingem os que padecem uma pena sem culpa, vitimados pela violência empregada nos conflitos bélicos. A intervenção de Israel no Líbano, induzida por uma provocação militar do Hezbollah, trouxe à tona a sensibilidade em relação a estes sofrimentos que incidem no contexto dos conflitos no Oriente Médio.

O contencioso Israel-palestinos é um dos epicentros destes conflitos. Ele não tem a clareza jurídica de uma controvérsia, qual seja a das condições de criação de um Estado palestino política e economicamente viável e o reconhecimento do direito de Israel de viver em paz dentro de fronteiras reconhecidas. Não tem esta clareza pois o problema se insere num ambiente de tensões. As tensões, em contraste com as controvérsias, são difusas. Manifestam-se por posturas que escapam à razoabilidade da lógica diplomática.

O Oriente Médio está permeado de múltiplas tensões. Entre elas a tensão da hegemonia provocada pelo unilateralismo da intervenção norte-americana no Iraque e seus efeitos; a tensão do solipsismo da razão terrorista; a tensão estratégica, induzida pelas aspirações de poder do Irã; a tensão da sublevação dos particularismos religiosos e nacionais.

Um entorno regional com estas características é centrífugo e heterogêneo. Carece de uma vontade comum de estabilidade. Por isso os esforços de persuasão diplomática se vêem atropelados pela violência. Esta é a razão pela qual a política na região está mais vinculada à busca dos meios para sobreviver e vencer, ficando em segundo plano a aspiração kantiana de construir a paz e evitar os sofrimentos da guerra, reconhecendo o direito à hospitalidade universal.

Esta contextualização de complexidades é necessária para o tema deste artigo, que diz respeito ao impacto, no Brasil, da importação das tensões no Oriente Médio.

Uma das características da globalização é a internalização, nos países, das tensões do mundo. É o que vem ocorrendo com a situação do Oriente Médio, no qual um dos elementos de irradiação é a tensão de hegemonia trazida pela ação norte-americana no Iraque. Esta leva ao antiamericanismo e afeta Israel, que tem nos Estados Unidos um decidido aliado.

No caso do Brasil, para a equação da internalização contribui o fato de existir um expressivo número de cidadãos brasileiros de origem libanesa com laços de família e de memória afetiva em relação ao Líbano, com compreensível sensibilidade ao que se passa num país que se estava reconstruindo em meio a suas dificuldades. Também é um dado desta equação a existência de um número relevante de cidadãos brasileiros de origem judaica, muitos dos quais também têm laços de família e de afeto com o Estado de Israel e que, por isso mesmo, olham para a segurança deste país com atenção. Neste olhar existe a memória de guerras do passado e dos insucessos das negociações, permeado por uma sensibilidade própria em relação aos atentados terroristas em Israel e ao fato de o Hezbollah operar a partir do Líbano, respaldado pela Síria com o declarado apoio logístico-militar do Irã - cujo presidente denega o Holocausto e propõe o desaparecimento de Israel do mapa do Oriente Médio.

Feitos estes registros, observo que o preâmbulo da Constituição considera como valores supremos do nosso país a concepção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias. Esta diretriz tem sido bem-sucedida na construção histórica do amálgama do povo brasileiro na diversidade das suas origens. Daí o tranqüilo entendimento entre brasileiros de origem árabe e de origem judaica. Este é um adquirido da convivência nacional a ser preservado. Não pode ser corroído pelo discurso de ódio que, lamentavelmente, tem aparecido como parte das internalizações das tensões do Oriente Médio.

É o caso, por exemplo, de certas virulentas manifestações antiisraelenses mescladas de inequívoco anti-semitismo do tipo das relatadas pela revista Carta Capital de 6/9 em matéria apropriadamente intitulada O Líbano é aqui.

A contenção do discurso de ódio tem sido objeto das normas internacionais dos Direitos Humanos às quais o Brasil aderiu. É o que estipula a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de São José. Este, no seu artigo 13, 5, reza: 'A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.'

É nesta moldura que o Direito brasileiro, no âmbito do artigo 5º, XLII, da Constituição, que prevê o crime da prática de racismo, capitula como prática de racismo o discurso de ódio (artigo 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90). Foi esse o entendimento que o Supremo Tribunal Federal consagrou ao decidir, em 2003, o caso Ellwanger, observando que a liberdade de expressão não consagra o 'direito à incitação ao racismo'.

Daniel Sarmento, escrevendo sobre o 'hate speech', explica, neste contexto, por que ele compromete a dinâmica da democracia. Observa que o discurso de ódio está mais próximo de um ataque que de uma participação no debate de opiniões; não se baseia no recíproco reconhecimento da igualdade da dignidade humana, que é a garantia da integridade da discussão na esfera pública, e, ao estigmatizar grupos, a eles causa dano, propiciando preconceitos.

Em síntese, a importação das tensões do Oriente Médio na forma de discurso de ódio precisa ser afastada. É inaceitável, pois fere a dignidade humana e compromete um dos objetivos constitucionais do Brasil, que é o de 'promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação' (Constituição federal, artigo 3º, IV).