Título: Uma aventura e seus problemas
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

As primeiras negociações entre o Brasil e a Bolívia, para importação do gás boliviano, se deram na ditadura de Getúlio Vargas, sendo presidente da Bolívia German Busch. Só foram retomadas em 1974, no governo do presidente Ernesto Geisel, com o presidente Hugo Banzer, que fizera estudos nos educandários militares brasileiros e tinha profunda admiração pelo então general Castelo Branco. Apesar das excelentes relações entre os dois presidentes, ambos governantes em regimes autoritários, as relações não frutificaram. É que a história política boliviana era marcada pela instabilidade, freqüente a sucessão dos inúmeros e violentos golpes de Estado. Na geração de Geisel se deram a sangrenta deposição do presidente Gualberto Villarroel e a exibição pública de seu corpo num poste. Talvez haja considerado temerário empenhar um empreendimento de bilhões de dólares, custo estimado da construção do gasoduto, sujeito à previsível inconstância dos governos bolivianos. De resto, o Brasil ainda não tinha grande consumo de gás na sua matriz energética e podia esperar.

Só no governo de Itamar Franco, em 1993, foi assinado o contrato de fornecimento de gás entre a Petrobrás e a estatal boliviana YPFB. Até a decisão da construção do gasoduto houve intenso debate. A Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), contrária, alegava a inviabilidade do projeto, levantada por empresa internacional de auditoria e pelo Banco Mundial, que se recusou a participar do financiamento. O impasse atravessou o breve governo de Itamar Franco e o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Um dos principais óbices levantados pela Aepet consistia na dúvida quanto às reservas de gás boliviano. A Bolívia assegurava ter, entre as jazidas provadas e as prováveis, 115 bilhões de metros cúbicos (m3). O consultor do Banco Mundial considerou que as reservas reais eram de 80 bilhões de m3, insuficientes para o fornecimento de 8 milhões de m3/dia durante oito anos e o dobro durante 12 anos contratados pelo Brasil, um total, pois, de mais de 93 bilhões de m3 durante 20 anos, o que transformava o projeto num risco financeiro. O superintendente da Petrobrás, do gasoduto, sustentou a assinatura do contrato, argumentando que as contestações da Associação dos Engenheiros eram inválidas por serem apenas de natureza ideológica. Lembrou, quanto à instabilidade política boliviana, que fazia mais de 20 anos que a Argentina recebia 6 milhões de m3 por dia sem nenhum problema. Havia outras cláusulas que a Petrobrás aceitou, correndo risco. Uma era o Brasil pagar diariamente por 80% do gás previsto para o fornecimento contratual, mesmo que não consumisse essa quantidade, o take or pay.

Havia, na polêmica, alternativas visando a obter menor preço final para o gás. O geólogo Walter Campos, que fora diretor de Exploração da Petrobrás, propunha duas. Uma, ideal, era a liquefação do gás já na fronteira com a Bolívia e prosseguir por via férrea em contêineres cilíndricos até os centros de consumo. Outra, o gasoduto terminaria em Três Lagoas (MS) e daí, liquefeito o gás, transportado por via fluvial para São Paulo. O ex-diretor de Perfuração da Petrobrás Fernando Xavier de Almeida defendia a prioridade para o aumento inicial da produção de gás nacional, cujas reservas comprovadas dizia serem de 130 bilhões de m3. E, sem importar gás da Bolívia, havia a possibilidade do gás do Peru, a ser transportado, também liquefeito, por via fluvial até os portos de Manaus, Belém e São Luís e, daí, distribuído aos centros consumidores, ou a importação do gás liquefeito venezuelano ou de Trinidad e Tobago.

A Petrobrás preferiu construir o supergasoduto, que vinha sendo boa solução. Comprara duas medíocres refinarias bolivianas, modernizou-as e hoje valem cerca de US$ 150 milhões. Para quê? Para servir exclusivamente ao consumo boliviano. E decidira fazer novos investimentos. Tudo ia bem até que foi eleito presidente da Bolívia o socialista Evo Morales, amigo de Lula, fraterno de Chávez e venerador de Fidel Castro. Convocou uma Constituinte para 'refundar a Bolívia'. Expropriou, sem indenizar, as refinarias, ocupou-as pelo Exército e nelas fez hastear a bandeira nacional boliviana, arriando a da Petrobrás, transformada em braço do 'imperialismo brasileiro'. Um gigantesco comício comemorou a expropriação, visando a galvanizar os nacionalistas na eleição dos constituintes. Esperava arrasadora maioria para escrever a Constituição que lhe daria plenos poderes.

O presidente Lula, para ajudá-lo nas eleições, quedou-se passivo e conteve a reação da Petrobrás, pois, 'se não brigou com o Bush, por que brigaria com o Evo?' Evo não obteve os votos necessários para escrever uma Constituição que lhe desse plenos poderes. Enquanto o governo brasileiro negociava a desapropriação, quase resignado, mas ajudara o amigo, este foi além: expropriou as finanças das receitas das refinarias. A nova violência leva os assessores de Lula a reagirem porque, a despeito de seu favoritismo nas pesquisas eleitorais, pode ser prejudicado se deixar consumar-se passivamente a lesão boliviana à Petrobrás, parte histórica de nosso patrimônio. Lula certamente acha que já cumpriu o dever de natureza ideológica, como o cumpriu a extinta União Soviética ao fazer de Cuba sua pensionista e o faz Chávez vendendo petróleo barato a Fidel.

É a vez de Evo não atrapalhar a reeleição de Lula. Solidário, não revoga, mas susta a execução da medida usurpadora até depois das eleições. Assim o boliviano socialista homenageia Proudhon: 'A propriedade é um roubo!' Resta-nos, se houver impasse, pensar nas alternativas do debate: a aquisição dos gás liquefeito do Peru, ou da Venezuela, ou de Trinidad e Tobago. A Bolívia 'refundada' pagará mais do que o cavalo com que pagamos a compra do Acre, segundo Evo Morales.