Título: Bush, afinal, pede aos EUA um sacrifício: o de seus princípios
Autor: Paul Krugman
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/09/2006, Internacional, p. A19

Muito tem sido escrito sobre a exigência de George W. Bush para que o Congresso 'esclareça' a parte das Convenções de Genebra que, de fato, proíbe o uso de tortura sob quaisquer circunstâncias. Sabemos que o mundo verá esta medida como um desprezo dos EUA às normas que unem as nações civilizadas. Sabemos, também, que um extraordinário elenco de ex-líderes militares e do serviço de informações, entre eles Colin Powell, têm falado contra o plano de Bush, advertindo que isso irá estragar ainda mais o já cambaleante prestígio moral dos EUA e deixará em risco soldados americanos.

Mas não temos visto muita discussão sobre a questão subjacente: Por que Bush está tão determinado em empregar a tortura? Vamos esclarecer sobre o que estamos falando. Segundo uma reportagem da ABC News, os procedimentos utilizados pelos interrogadores da CIA incluíam obrigar os prisioneiros a 'ficar de pé, algemados e com os pés presos a um anel metálico no chão por mais de 40 horas'. Há também a cela fria, na qual os detentos são forçados a 'ficar de pé, nus, numa temperatura em torno de 10°C', enquanto são molhados com água fria. E, é claro, a 'tábua de afogamento', na qual 'o prisioneiro é amarrado a uma tábua inclinada, com os pés elevados e a cabeça ligeiramente abaixo da altura dos pés'. 'Seu rosto é enrolado em papel celofane e é jogada água sobre ele', induzindo a 'um aterrorizante medo de afogamento'.

Tenha em mente que a desculpa de 'algumas maçãs pobres' não se aplica, pois são táticas aprovadas oficialmente e Bush quer que ao menos algumas delas continue em uso.

Estou envergonhado de que meu governo faça este tipo de coisa; estaria envergonhado mesmo que tivesse certeza de que somente os terroristas genuínos estavam sendo torturados - e eu não tenho certeza. Lembrem-se de que o governo Bush prendeu uma série de homens inocentes em Guantánamo e, em alguns casos, continua a mantê-los presos mesmo sabendo que são inocentes.

Será a tortura um mal necessário num mundo pós-11 de Setembro? Não.

Pessoas com conhecimento do trabalho do serviço de informações nos dizem que a realidade não é parecida com os dramas de TV, nos quais os caras bons têm de torturar o cara mau para descobrir onde ele plantou a bomba-relógio que está fazendo tiquetaque.

A tortura produz, na prática, informações erradas, pois suas vítimas, desesperadas para acabar com a dor, dizem aos interrogadores o quer que eles queiram ouvir. Foi assim que Ibn al-Shaykh al-Libi, a quem a ABC News diz que foi submetido tanto à cela fria e à tábua de afogamento, disse a seus inquisidores que o regime de Saddam Hussein treinou membros da Al-Qaeda para usar armas biológicas. Essa 'confissão' se converteu numa parte importante da justificativa do governo para invadir o Iraque - mas era pura invenção.

Então, por que o governo Bush está tão determinado a torturar pessoas? Para mostrar que pode.

O objetivo central do governo Bush - mais fundamental do que qualquer política particular - tem sido o esforço para eliminar quaisquer limites ao poder do presidente. Portanto, acredito que tortura agrada ao presidente e ao vice-presidente precisamente porque é uma violação tanto da lei como da tradição. Ao transformar uma prática ilegal e imoral num elemento-chave da política americana, eles estão afirmando seu direito de fazer o que alegam ser necessário.

A maioria dos republicanos da Câmara está propensa a votar em favor do plano para declarar legal a tortura, efetivamente. A maioria dos senadores republicanos está também disposta a acompanhá-los. Bush tenta nos fazer acreditar que a diferença entre ele e os que se opõem a esta questão é que ele está disposto a fazer o necessário para proteger os EUA e os adversários, não. Os antecedentes dizem outra coisa.

A verdade é que apesar de toda sua retórica de ser 'um presidente de um país em guerra', Bush vem se mostrando ostensivamente indisposto a pedir aos americanos que façam sacrifícios em nome de sua causa, mesmo quando, nos dias posteriores ao 11 de Setembro, a nação ansiou para ser chamada para um propósito superior. Seus admiradores olharam para ele e pensaram estar vendo Winston Churchill. Mas em vez de nos oferecer sangue, labuta, lágrimas e suor, ele nos disse para fazer compras e prometeu reduções nos impostos.

Só agora, passados cinco anos do 11 de Setembro, finalmente Bush encontrou algumas coisas que quer que sacrifiquemos. E essas coisas são nossos princípios e nosso respeito próprio.