Título: Uma afronta à democracia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/09/2006, Notas e Informações, p. A3

A escuta de telefones, já há tempos incorporada a nosso vocabulário pelo termo grampo, é uma violação do direito à privacidade quando não autorizada pela Justiça - e esta só a autoriza se a julga imprescindível a um processo de investigação criminal. Não é de hoje que altos escalões do governo e até ministros de Estado já passaram pelo constrangimento de ter seu ambiente de trabalho vasculhado pela espionagem telefônica, pelo que até já se tornaram habituais as 'varreduras' técnicas para a detecção de grampos. No entanto, o grampo descoberto nos telefones de três ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entre os quais seu presidente, Marco Aurélio Mello, e o vice-presidente, Cezar Peluso - ambos também integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) -, é de gravidade muito maior, especialmente ao se considerar a importância da atuação desses ministros no período eleitoral em curso. O terceiro grampeado, ministro Marcelo Ribeiro, é um dos responsáveis pela análise das reclamações contra propagandas de candidatos à Presidência da República.

Desde que assumiu a presidência do TSE, o ministro Marco Aurélio Mello tem se revelado um dos mais rigorosos condutores do processo eleitoral, não se cansando de advertir candidatos e partidos no tocante à estrita observância às regras impostas pela legislação eleitoral, da mesma forma como cobra, com veemência, a ética na política. Já em seu discurso de posse prometia rigor com os políticos que cometem irregularidades, dizendo que o Brasil se transformou no país do 'faz-de-conta', nestes termos: 'Faz de conta que não se produziu o maior dos escândalos nacionais, que os culpados nada sabiam.'

Registre-se que nesta semana o TSE deverá julgar recursos de políticos excluídos da eleição por responderem a processos judiciais ou serem investigados em inquéritos em curso no STF - entre os quais estão os suspeitos de envolvimento nos escândalos sanguessuga e mensalão. Quanto ao horário gratuito, o ministro Marcelo Ribeiro - considerado um dos mais rigorosos - foi o primeiro a condenar o que julga invasão do tempo de propaganda dos candidatos aos governos estaduais e ao Congresso. A propósito, a candidatura do presidente Lula já perdeu 10 minutos nos programas e inserções e poderá perder 12 minutos em inserções e 37 minutos nos programas, caso sejam acatadas outras reclamações. Isso levou o presidente-candidato a determinar que seu conselho político - constituído por seus principais assessores - enviasse ao TSE uma comissão, para discutir o que considera excesso de rigor no julgamento de irregularidades da propaganda eleitoral - sobretudo 'contra a candidatura petista'.

Uma comissão do governo enviada para discutir a aplicação da lei com os magistrados é um absoluto despropósito. Qualquer remota tentativa de o Executivo exercer influência sobre decisões do Judiciário - que fuja à exposição de argumentos persuasórios nos autos dos processos, em observância aos trâmites legais - é um desrespeito entre Poderes. Na verdade, antes de a candidatura Lula sentir-se mais cobrada pela Justiça Eleitoral que as demais, deveria refletir sobre a, digamos, ambigüidade de posicionamento do presidente-candidato, que já disse não saber ao certo quando é presidente e quando é candidato, por isso sofrendo maior risco do que seus adversários de desrespeitar a lei, pela mistura de papéis.

É claro que não se pode atribuir a algum candidato, partido ou grupo político a responsabilidade pelo grampo criminoso dos telefones dos ministros do TSE, antes que sejam identificados os autores da ação ilícita. O ministro Marco Aurélio reage à grave violação, encaminhando ofício à presidente do STF, Ellen Gracie, apresentando queixa-crime ao procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, e fazendo um desabafo: 'Quando um ministro do Supremo é bisbilhotado, é sinal de que estamos vivendo uma época de verdadeiro terror.' Infelizmente, temos que concordar com o ministro. Há, sim, uma época de terror, que se manifesta de várias maneiras - inclusive através de atentados cada vez mais violentos contra a ética na atividade política.