Título: Esperneio inútil
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/09/2006, Notas e Informações, p. A3

O Brasil usou amplamente o direito de espernear, sem o mínimo efeito prático, no debate sobre a nova distribuição de cotas e de poder de voto no Fundo Monetário Internacional (FMI). Classificada como inaceitável pelo governo brasileiro, foi aprovada com 90,6% dos votos a proposta apresentada pelo diretor-gerente do Fundo, Rodrigo de Rato. Um resultado como esse não admite discussão, mesmo levando-se em conta que os dez maiores sócios detêm pouco mais de 50% do poder e estavam decididos a apoiar a resolução.

O fato é que os principais opositores - Brasil, Argentina, Índia e Egito - não mobilizaram apoio sequer para um resultado menos que esmagador. Este adjetivo foi usado pelo diretor-gerente, na terça-feira, para anunciar o resultado à assembléia geral de ministros.

Os opositores ainda poderão lutar, na próxima fase da reforma, para que a nova fórmula das cotas, ainda não definida, sirva a seus interesses e não sacrifique alguns países de renda média em benefício de outros emergentes.

A derrota na primeira batalha pode ajudar os brasileiros a pensar com um pouco mais de realismo sobre sua posição no mundo e sobre os objetivos nacionais. Uma lição de humildade pode ser salutar de vez em quando.

Que a Índia não tenha conseguido apoio em sua região é compreensível, apesar de seu peso. Os governos da Ásia mostram entusiasmo com o fortalecimento da China e da Coréia, beneficiadas na primeira fase da reforma. A imprensa regional tem refletido otimismo quanto à influência crescente dos países da área. A integração regional é um fato econômico tangível. O papel da China como indutora de crescimento é reconhecido.

Brasil e Argentina conseguiram apoio de boa parte dos latino-americanos. O fortalecimento do México, também favorecido na primeira distribuição de cotas, não parece haver emocionado a região. Poucos latino-americanos votaram a favor da proposta, segundo as informações conhecidas até agora.

Brasil e Argentina, que representam na Diretoria Executiva dois grupos de países com poucos votos individuais, parecem haver liderado seus parceiros. O caso da Ásia é diferente: a liderança de países como China e Coréia tem relação com a economia regional e não com a organização interna do FMI.

O confronto, portanto, foi entre um grupo formado na maior parte por latino-americanos e o resto do mundo. Este resto inclui todas as grandes potências capitalistas, a China e quase todas as nações emergentes mais dinâmicas, incluído o grupo do Leste Europeu.

Não surpreende que a resistência do Brasil e de seus parceiros tenha atraído pouca atenção. A América Latina tem mudado, está menos vulnerável e não está em crise neste momento, mas isso é tudo. A maioria de seus países continua a crescer muito menos que as outras economias em desenvolvimento. Nada muito interessante está ocorrendo na região - pelo menos nada de positivo - enquanto a Ásia oferece ao mundo o espetáculo de quatro décadas de crescimento e de modernização. Fora da Ásia, a grande mudança ocorre no Leste Europeu ex-comunista, que se transformou num espaço preferencial de investimento para as empresas da Europa Ocidental.

Quanto ao Brasil, é um país grande, que ainda carrega o peso de 20 anos de estagnação e não parece ter um rumo definido para o longo prazo. Exibe uma curiosa mistura de modernidade - concentrada no agronegócio e em certos núcleos industriais - e de grande atraso político, institucional e social. É relevante no comércio agrícola e também exporta produtos industriais, mas disputa pouco espaço nos mercados de produtos de tecnologia de ponta. Está muito menos integrado na economia global do que os emergentes mais dinâmicos. Apesar do aumento de suas exportações, seu peso no comércio internacional ainda é modesto.

Enquanto seus líderes são incapazes de resolver questões elementares da modernização e do desenvolvimento, como a reforma dos impostos e da educação, o Brasil assiste, semi-estagnado, à rápida transformação de outras regiões. Irrelevância é uma das conseqüências dessa situação. Nos últimos dias, o esperneio brasileiro no FMI não teve nenhuma repercussão notável. Quem pode surpreender-se com isso?