Título: Políticos que agem na hora certa salvam Congresso
Autor: Luciana Nunes Leal, Eugênia Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2006, Nacional, p. A22

Quem pedir a opinião dos deputados e senadores sobre o Congresso ouvirá queixas contra os corruptos, os incapazes e os preguiçosos. Mas quando se pede um balanço dos últimos quatro anos, eles respondem: 'As instituições funcionaram e a democracia venceu.'

A teoria é democraticamente correta, mas não é verdadeira. Alguns indivíduos 'funcionaram' entre 2002-2006. O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) 'funcionou' quando, informado de que a bancada do governo crescia graças a um socorro financeiro mais tarde chamado de mensalão, fez a denúncia na tribuna. Mas os deputados ouviram o discurso sem reagir. A instituição seguiu na vidinha poluída de sempre e depois elegeu um tipo como Severino Cavalcanti para presidente da Casa. Após muitos escândalos e desaforos, Severino - suspeito de cobrar propina para renovar a concessão do restaurante da Câmara - perdeu o cargo numa ação de guerrilha parlamentar de Fernando Gabeira.

Os acordos de 80 parlamentares que comandam o Congresso avançaram na direção da impunidade e dos pactos de conveniência. As instituições políticas existem para que se possa dispensar indivíduos providenciais. Quando se precisa deles, é porque a situação está muito ruim. O pacote de escândalos desta legislatura mostra como é limitada a capacidade de ação dos parlamentares providenciais. Um deles, o senador Jefferson Péres (PDT-AM), já avisou que pretende pedir o boné no fim do mandato, em 2010.

Existem duas explicações para esse esfarinhamento institucional. Uma delas sustenta que o Congresso já nasceu como um instrumento auxiliar dos setores atrasados do País. É a visão de que o Congresso não é ruim por acaso - mas porque há interesses que querem que seja assim. Outra visão sustenta que ao longo do tempo o Congresso afastou-se dos grandes temas nacionais para se tornar um abrigo de aventureiros e oportunistas, preocupados na defesa de seus próprios interesses e que não prestam contas a ninguém. Severino seria a expressão definitiva desse fenômeno.

A falta de prestígio do Congresso não é uma exclusividade brasileira. Tem relação com o crescimento universal dos poderes do Executivo, fenômeno que reduz a importância efetiva do trabalho dos parlamentares. Miro Teixeira recorda que o ambiente era outro há 28 anos, quando assumiu o primeiro mandato. Os deputados não tinham gabinete individual e trabalhavam em salas comuns a 15 parlamentares. A quantidade de assessores era reduzida e o plenário vivia cheio. 'Você prestava atenção nos discursos. Havia um ambiente coletivo, de discussão e idéias.'

Para Plínio de Arruda Sampaio, que cumpriu o primeiro mandato em 1963, 'os parlamentares ganharam mordomias mas perderam poder'. Plínio acredita que antes o Congresso debatia, votava e aprovava medidas. 'Hoje referenda.' Em 1988, na Constituinte, Plínio foi favorável às medidas provisórias, que entram em vigor sem aprovação do Congresso. 'Mas seria um recurso para ser usado em caso de catástrofe. Virou método para o governo regulamentar carreira de funcionário público.'

'A política perdeu importância', diz Sérgio Miranda (PDT-MG). Ele recorda que, dias atrás, o plenário votou um pacote de 20 medidas provisórias numa só noite. 'Foi um processo sem discussão. O absurdo é que no final os parlamentares festejaram, como se fosse um grande feito. Na verdade era atestado de nossa desimportância: votamos coisas importantíssimas sem discutir nada.'

Uma das mais antigas leis de Brasília ensina que cada presidente tem o Congresso que merece. Sempre houve trocas de favores no Congresso. José Sarney garantiu o mandato de cinco anos distribuindo concessões de rádio e TV. No governo de FHC, criou-se uma 'zona cinzenta de amoralidade', como definiu o filósofo José Arthur Gianotti, onde ocorreram casos reais de compra de votos. Mas a regra eram emendas para o orçamento e cargos no Estado - práticas que, conforme o padrão do interessado, podem ou não embutir as 'beiradas', na antológica definição atribuída ao senador Ney Suassuna (PMDB-PB). Mas não é compra de voto numa rede regular e clandestina, como no mensalão criado no governo Lula. 'O PT regularizou um crime', afirma um assessor da Casa. 'Isso jamais tinha ocorrido antes, não dessa forma.'

Muitas pessoas lamentam que o Congresso tenha deixado de ser um fórum para a discussão de grandes temas nacionais. Na maioria das democracias, funcionam fórmulas variadas de voto distrital e o Congresso se abre para o conflito entre interesses especiais - sejam de categorias, de setores econômicos e de causas variadas. Embora o voto distrital tenha sido rejeitado em todas as reformas políticas ensaiadas no Brasil, a política parlamentar tem evoluído na direção de um voto distrital informal, o que é de certo modo inevitável. Houve época em que menos de 1% da população tinha direito a voto no País. Hoje, quase a totalidade dos brasileiros acima dos 18 anos é chamada a comparecer às urnas, pois o voto é obrigatório. Essa popularização do voto conduziu a uma popularização do próprio Congresso - que hoje possui uma imponente bancada de assalariados e funcionários públicos - e, por fim, à popularização da pauta dos trabalhos. Conforme o instituto de pesquisa Brasmarket, 45% do eleitorado do País escolhe deputados e senadores pelo critério das questões locais - e menos de 20% prioriza questões nacionais.

Esse fenômeno diminui espaço para deputados que cultivam o chamado 'voto de opinião', para dar lugar a quem tem respostas para o bairro e o município. 'É isso o que me perguntam, o tempo inteiro', admite Sérgio Miranda, referindo-se a uma questão que aparece em todo o País.

Em tese a maioria dos parlamentares não vê problemas na distritalização informal do voto. Na prática, muitos dizem que enfraquece o espaço político, que se transforma numa arena para a disputa de verbas no orçamento - e abre espaço para a corrupção. Guerrilheiros da ética, como Gabeira, querem acabar com emendas individuais de parlamentares como forma de dedetizar a corrupção. Parlamentares que são honestíssimos mas não têm o mesmo prestígio se perguntam como iriam fazer para conseguir votos.

Para Miro Teixeira, os problemas seriam menores se o Congresso não tivesse decidido, em 1994, reduzir o mandato presidencial de 5 para 4 anos e criar a coincidência de mandatos de presidente a deputado estadual. Por causa dessa mudança deputados foram condenados a participar de uma competição desigual pela atenção da população, pois concorrem no mesmo pleito em que se escolhe ocupantes do Planalto e dos governos de Estado. 'Não dá nem para competir', observa Miro. O saldo são as escolhas fugazes - o que torna compreensível que 65% dos eleitores nem lembrem em quem votaram no último pleito.

Na luta desesperada pela atenção do eleitor, boa parte do plenário se transformou em caçadores de imagens televisivas. 'Sou um parlamentar com história, já participei de momentos importantes do Congresso, mas quando ando pela rua muita gente pára e me diz, em tom de cobrança, 'eu não vi o senhor na CPI'', conta Sérgio Miranda. A busca permanente por imagens está na origem íntima de boa parte dos abusos cometidos pelo Congresso. É o alvo permanente dos factóides parlamentares e também explica o esforço absurdo para formar CPIs, onde deputados realizam interrogatórios exibicionistas.

'Já trouxemos até traficantes de drogas para serem ouvidos', observa Sérgio Miranda. 'Eu me pergunto se a nossa democracia vai sobreviver à televisão', pergunta o historiador Otaciano Nogueira.