Título: Todos os autores do presidente
Autor: Simon Romero
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2006, Internacional, p. A32

O presidente Hugo Chávez, sabe-se, fala um bocado. Seja em casa ou na estrada, em Damasco ou em Minsk, seus discursos duram horas.

Freqüentemente, quando fala, Chávez despeja os nomes de livros que está lendo ou que aprendeu a amar, oferecendo insights sobre as várias influências literárias e intelectuais de seu pensamento e do que ele chama de sua Revolução Bolivariana, um amálgama de políticas de inspiração socialista e antiamericana.

Entre seus autores favoritos está Victor Hugo - e Os Miseráveis, com sua descrição de paixões em meio às barricadas revolucionárias, ocupa o topo de sua lista de leituras obrigatórias. No juramento dos ministros da Nutrição e da Economia Popular, ele recitou uma passagem da introdução sobre a necessidade de extirpar a ignorância e a pobreza.

Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, também comparece com destaque em seus discursos, com Chávez se identificando com o combate à injustiça do excêntrico cavaleiro andante. Para comemorar o 400º aniversário da publicação do livro, no ano passado, o governo venezuelano comprou um milhão de exemplares e os distribuiu de graça. Comprou também 70 mil exemplares em inglês para vizinhos caribenhos e 5 mil em francês para o Haiti.

Os partidários do presidente, que ainda são maioria no país, amam essas exibições e apontam os esforços feitos nos últimos anos para a redução do analfabetismo. Já seus críticos sugerem que esta é mais uma maneira de o governo elevar os gastos públicos. Se existe um ranço da pretensão intelectual terceiro-mundista, ao estilo anos 1970, no populismo de sua campanha de promoção de certos livros, Chávez não parece se importar. Aliás, isso reflete o que parece ser uma estratégia mais ampla de sua parte: o presidente parece determinado a articular e espalhar uma ideologia nacional, como fizeram Fidel Castro e Perón.

O governo está colocando mais livros à disposição da população com programas como o da Fundação Kuai Mare, que opera uma cadeia de mais de 50 livrarias abastecidas, em grande parte, com livros de viés nacionalista e esquerdista vendidos a preços irrisórios.

Além de clássicos da literatura européia, Chávez recomenda obras de teóricos e historiadores políticos latino-americanos e até de algum americano ocasional. Diz ter lido John Kenneth Galbraith na adolescência em Barinas, onde seus pais eram professores.

A Economia das Fraudes Inocentes (lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras), uma crítica contundente da economia americana, mereceu destaque de Chávez. Galbraith, que morreu em abril, aos 97 anos, ¿não é um socialista, mas ainda é um crítico do capitalismo¿, disse Chávez recentemente em seu programa de televisão dominical Alô, Presidente. Ele se definiu como ¿galbraithiano¿.

Algumas de suas leituras favoritas podem ser previsíveis, dada sua aversão por tudo que tenha a ver com o presidente dos Estados Unidos. Um de seus pratos de resistência anti-Bush é Cara, Cadê meu País? (editora W11), livro do cineasta Michael Moore.

Outras referências são um pouco mais obscuras, como O Ponto de Mutação (editora Cultrix), de Fritjof Capra, um físico de origem austríaca. Chávez pinçou uma passagem no livro, sobre o encerramento de séculos de exploração, para discutir sua oposição aos esforços americanos para criar uma zona de livre comércio nas Américas. Também cita livros recomendados a ele por Fidel Castro, outro leitor voraz. Um deles é A Economia do Hidrogênio (editora M. Books), de Jeremy Rifkin, que discute como livrar o mundo da dependência do petróleo. ¿O livro se baseia em algo que não é mais uma hipótese - é uma tese¿, disse ele numa visita a Teerã, em julho. ¿O petróleo se esgotará algum dia.¿

Aqui na Venezuela, que possui as maiores reservas de óleo fora do Oriente Médio, as pessoas se habituaram às recomendações literárias do presidente. O que realmente parece interessar a muitos venezuelanos são livros sobre o próprio Chávez. As livrarias de Caracas exibem mais de uma dúzia de títulos, de biografias não-autorizadas a demonstrações dos esforços da administração Bush contra seu governo.

Cristina Marcano, co-autora de uma biografia muito vendida, Hugo Chávez sem seu Uniforme (editora Gryphus), diz que, em seus tempos de Exército, o presidente citava a influência de O Livro Verde, do coronel Muamar Kadafi, da Líbia, lançado em meados dos anos 1970. ¿Ele leu Kadafi com grande admiração¿, afirmou Cristina numa entrevista. Uma das idéias de Kadafi era proibir a atividade comercial varejista, evento indutor do caos econômico que o líder venezuelano sabiamente ignorou.

E como é que Chávez, sobrecarregado por outras responsabilidades, consegue ler tanto? Uma pista foi revelada por Herma Marksman - que é tema de El Otro Chávez, um dos 16 livros que o conhecido analista político venezuelano Alberto Garrido escreveu sobre o presidente. Herma, uma professora de história que foi amante de Chávez de 1984 a 1993, contou em uma entrevista que, quando estava ao volante, ele freqüentemente pedia a ela que lesse um livro em voz alta. ¿Ele bebia cada palavra, especialmente se era uma ficção de García Marquez¿.

Por mais eclético que possa parecer o gosto literário de Chávez, existe uma constante em sua biblioteca. Ele repete com freqüência as máximas de líderes guerrilheiros e militares, louvando sua ascensão ao poder pela força das armas.

Entre eles estão Simon Bolívar, o pai da independência venezuelana, Napoleão, Che Guevara e Mao Tsé-tung. Numa visita, em setembro, à academia militar nacional, Chávez leu textos de Mao. ¿Na China, ninguém mais faz isso¿, disse o jornal oposicionista El Nacional num editorial, ¿mas ele ainda não descobriu, apesar de suas cinco viagens ao país de Deng Xiaoping.¿