Título: Mudar a ONU é quase impossível
Autor: Paul Kennedy
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2006, Internacional, p. A33
Com a poeira assentada no sul do Líbano, mais um conflito no Oriente Médio chega a um fim preocupante. Mas, como a força internacional para manutenção da paz finalmente chegou à região, a atenção se volta novamente para a organização mundial criada há seis décadas exatamente para tratar desse tipo de emergência internacional. O que fará a ONU? O que poderá fazer? Por que o todo-poderoso Conselho de Segurança não pode, teoricamente, ser flexibilizado?
Se, em 1945, a comunidade mundial criou expressamente uma organização para ¿salvar as gerações futuras do flagelo da guerra¿, é desconcertante o fato de que ela não se ajusta mais àquela finalidade. Como explicar para políticos nacionais indignados e um público enraivecido as freqüentes paralisias dentro da instituição mais poderosa e mais controvertida das Nações Unidas, que é o Conselho de Segurança, ou as manobras diplomáticas bizantinas para facilitar a diluição de certos compromissos?
Essa questão se revestiu de urgência a partir da semana passada, quando chefes de Estado e de governo de todo o mundo se reuniram em Nova York para discursar na Assembléia-Geral da ONU e eleger um sucessor para Kofi Annan como secretário-geral. Diante desta última tarefa, a atenção imediatamente se concentra nas barganhas políticas que ocorrem nos bastidores do Conselho de Segurança.
Enquanto o ministro das Relações Exteriores da Coréia do Sul, Ban Ki-moon, surge como o candidato favorito nessa disputa pelo cargo de secretário-geral, os Estados membros reunidos nessa 61ª assembléia anual tiveram a promessa de um pacote de propostas de reforma. Essas propostas, para aperfeiçoar o modo como as Nações Unidas funcionam, abrangem medidas para reduzir o desperdício, a burocracia e as possibilidades de corrupção, uma simplificação dos procedimentos e planos para um exame das débeis finanças da organização.
Todas elas são importantes, mas nenhuma entusiasma o público e nem mesmo é uma prioridade para os governos que deverão votar pelas mudanças. O único assunto que certamente mobilizará a atenção e tem instigado os Estados membros desde que a ONU foi criada em São Francisco, em 1945, será o pedido de uma reforma do próprio Conselho de Segurança.
O processo de eleição de um novo secretário-geral realça nitidamente o desequilíbrio intrínseco da composição do conselho. Divulgou-se que Ban Ki-moon teria obtido o apoio de 14 dos 15 membros do organismo na última sondagem, o que o colocaria confortavelmente à frente de seu mais próximo concorrente, o candidato da Índia, Shashi Tharoor. Apenas uma coisa poderia impedir a escolha de Ban pelo Conselho de Segurança, a ser endossada pela Assembléia-Geral: um voto contrário de um dos cinco membros permanentes com poder de veto (Grã-Bretanha, China, França, Rússia e EUA).
As propostas de reforma do Conselho de Segurança têm duplo sentido: dado o poder conferido pelo veto, a idéia é: ou aumentar o número de Estados com prerrogativa de veto, ou reduzir o alcance desse privilégio e até eliminá-lo completamente. São propostas um tanto contraditórias, mas qualquer uma delas mudaria dramaticamente o equilíbrio do poder na ONU e, para seus defensores, tornaria a organização mais eficiente.
Na verdade, nenhuma das propostas deve ir adiante, já que todas caem na conhecida armadilha Catch 22 (em português, Ardil 22, título do livro de Joseph Heller que se tornou sinônimo de um dilema que envolve elementos tão contraditórios que é impossível resolver) da Carta da ONU. Em 1945, as cinco potências vitoriosas da 2ª Guerra se outorgaram o direito de veto e depois congelaram esse privilégio numa carta de fundação que elas e outros Estados membros prometeram respeitar. Assim, qualquer tentativa futura para alterar o estatuto das potências que ocupam a ¿mesa de honra¿, ou para aumentar ou diminuir seu número, só poderia ser bem-sucedida se o veto não fosse exercido. Qualquer um dos cinco membros permanentes pode frear qualquer proposta de mudança - e fará isso.
O acordo de 1945 foi realizado diante das históricas ¿lições¿ que os planejadores aliados aprenderam durante os anos entre guerras e o fracasso da Liga das Nações em conter as agressões fascistas. A primeira dessas lições ensinava que, num mundo de anarquia internacional, pequenas nações como Bélgica, Finlândia ou Tailândia seriam ¿consumidores¿ implícitos de segurança, ou seja, países que não poderiam se proteger no caso de ser atacados por um vizinho mais poderoso.
Em compensação, as potências seriam ¿provedoras¿ de segurança, não por alguma virtude inerente, mas porque, sozinhas, tinham força suficiente para deter ou derrotar futuros agressores (na verdade, esses planejadores pensavam seriamente na possibilidade de um ressurgimento dos poderes militares alemão e japonês nos anos 60). Os encarregados de subjugar quaisquer atos futuros de agressão seriam a Grã-Bretanha, os EUA e a União Soviética. Portanto, era importante que esses países tivessem um assento permanente e um poder de veto numa ONU à qual se dava tanta autoridade em assuntos de guerra e paz.
A segunda lição irrefutável era a de que seria crucial manter todos os grandes elefantes sob a tenda do circo, ou seja, EUA e Rússia tinham de fazer parte das Nações Unidas. Esta era uma obsessão britânica, que tinha origem nas lembranças amargas da Liga das Nações.
Os EUA nunca participaram da Liga das Nações e a União Soviética só entrou na década de 30 (tendo se afastado depois de invadir a Finlândia em 1940). Japão, Alemanha e Itália saíram da organização. Mas, para os americanos e um personagem ainda mais suspeito, Josef Stalin, permanecerem dentro desse circo, eles precisaram receber garantias de que poderiam obstruir qualquer ameaça das Nações Unidas a seus interesses nacionais. Daí o veto, disfarçado na sutil linguagem da Carta (artigo 27, parágrafo 3º) de que a votação de matérias substanciais pelo Conselho de Segurança exige ¿votos concomitantes dos membros permanentes¿. E quem decide quando uma matéria é substancial? Claro que os cinco membros permanentes. E aí está!
Isso fez sentido na época, mas hoje as desvantagens são gritantes. Qualquer avaliação objetiva sugere que a Índia - e talvez o Brasil e ainda a África do Sul - deve ter um lugar na mesa de honra. Para os críticos, as reivindicações da Grã-Bretanha e da França de continuarem com o privilégio do veto são anacrônicas. E para nações menores de pensamento independente, como Cingapura, o próprio direito ao veto é ilegítimo. Ter cinco governos capazes de bloquear o sistema internacional já é péssimo. Então, por que aumentar esse número para oito ou dez?
Mas como mudar este sistema desatualizado e rígido? Apenas alterando a Carta. Naturalmente, os termos adotados pelo sistema em 1945 podem ser emendados, mas somente se os Parlamentos de dois terços dos países membros da Assembléia-Geral votarem favoravelmente - e se os cinco membros permanentes não fizerem objeção, condição fundamental.
Portanto, esqueça qualquer proposta para tirar os privilégios da Grã-Bretanha e França; simplesmente será vetada. Esqueça também as expectativas do Japão de se tornar um membro permanente com poder de veto. A China não permitirá. A Alemanha não conseguirá os votos necessários e mesmo o Brasil poderá ter de lutar por apoio, dadas as reservas de vários países latino-americanos.
Assim, por um processo de eliminação, o único candidato viável é a Índia. Em termos de tamanho, população, economia em expansão, um histórico de contribuições para os trabalhos de manutenção da paz da ONU, uma posição de destaque nas organizações globais (Organização Mundial do Comércio, Kyoto, etc), tudo leva para esse caminho. E pode até conseguir os votos necessários na Assembléia-Geral. Nesse caso, qual dos cinco países do conselho permanente a vetaria? Até a China hesitaria.
Fora a candidatura da Índia, parece pequena a perspectiva de uma alteração significativa na composição do conselho. Mas se algumas medidas fossem adotadas, o órgão poderia parecer - e ser - mais autêntico e mais legítimo do que agora. Quando se concordou com um total atual de 10 membros não-permanentes, apenas 75 governos eram representados na Assembléia-Geral. Agora que esse número subiu para 191, seria o caso de aumentar o número de membros do conselho. O aumento não precisaria ser drástico. Se houvesse um aumento de 10 para 18 membros não-permanentes, teríamos 23 governos no Conselho de Segurança, o que parece ser bem funcional. E é preciso pensar seriamente em abolir a regra segundo a qual um membro não-permanente só pode ocupar o assento por dois anos.
Essas mudanças modestas permitiriam que outros países tomassem conhecimento das atividades do Conselho de Segurança, tornando-o mais representativo. E a abolição da limitação de dois anos de mandato pode permitir que países com bons antecedentes no campo da manutenção da paz e um peso regional importante (caso do Brasil e da Índia) tenham oportunidade de ser eleitos para um segundo mandato, sem interrupção. Em segundo lugar, qualquer mudança na Carta - nenhuma foi feita desde a década de 60, quando o número de membros rotativos aumentou de 6 para 10 - criará um precedente útil, mostrando que as regras da ONU não são imutáveis.
Mesmo assim, retrucam os críticos, os cinco grandes continuarão sendo os cinco grandes (ou seis, com a Índia), com sua permanência e poder de veto mantidos intactos. Apesar de toda a injustiça, não é um desastre completo. As normas atuais são como uma válvula de pressão para os membros com poder de veto, permitindo que eles controlem o que a ONU ¿não¿ pode fazer. John Bolton, embaixador dos EUA na ONU, pode descarregar sua irritação em cima das atuais inadequações da ONU (como ele as vê), mas mesmo as vozes mais isolacionistas do governo americano percebem as vantagens de permanecer num fórum onde, afinal, o governo dos EUA tem o maior poder de pressão.
O veto e a limitação da afiliação permanente do Conselho de Segurança não são os únicos problemas enfrentados pelas Nações Unidas. Há outros desafios do mesmo porte, como o terrorismo internacional e os ¿Estados falidos¿, não previstos pelos fundadores da ONU. Eles se concentraram em elaborar regras sobre como governos soberanos deveriam se comportar entre si, incluindo o famoso Artigo 2, Parágrafo 7º, que dispõe: ¿Nada, na presente Carta, autorizará as Nações Unidas a intervir em questões que estejam essencialmente na jurisdição nacional de qualquer Estado.¿
Essa foi a salvaguarda de regimes cruéis e uma grande fonte de frustração para os secretários-gerais das Nações Unidas e outros que exigiram ações para impedir genocídios internos. E Estados frágeis ou em colapso são facilmente dominados por grupos terroristas.
Embora a questão sobre o que se deve fazer quando a sociedade está fraturada pela guerra civil e pelo genocídio não tenha sido contemplada por uma cláusula especial na Carta da ONU, a existência do veto freqüentemente resolve o problema.
No entanto, em muitas ocasiões, a capacidade das Nações Unidas de agir no caso de conflitos ou de abusos de direitos civis domésticos (caso de Darfur, Tibete, Chechênia) tem sido severamente prejudicada por causa de ameaças dos cinco membros permanentes de usarem seu poder de veto.
Dados o atual Congresso dos Estados Unidos e a atual administração americana, por exemplo, é difícil imaginar como poderia ser aprovada pelo Conselho de Segurança uma resolução vigorosa contra Israel.
Assim, para alguns observadores, o veto impede que a organização vá muito longe numa questão controvertida. Para outros, a capacidade de os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança protegerem Estados clientes e evitarem condenações de abusos internos é uma distorção dos mais altos ideais da ONU.
O que nos leva de volta às agonias do Oriente Médio. Cada protagonista do drama sabe que as Nações Unidas precisam ter um papel na região. Mas a organização precisa aguardar o desenrolar dos fatos e depois as difíceis negociações entre os principais atores - Israel, Estados Unidos, os países restantes do Conselho de Segurança, e os Estados árabes vizinhos - para saber exatamente que funções deve executar. Uma força de paz ampliada no sul do Líbano; ajuda humanitária de emergência; a lenta reconstrução da infra-estrutura civil; negociações delicadas em Genebra; mais um empurrão no sentido de uma solução de dois Estados entre Israel e os palestinos: todas ou algumas dessas alternativas? Não esperemos muita coisa para breve.
Portanto, a ONU segue vacilante, presa entre a ambição de seu desenho original e o rude fato de que a ordem mundial permanece uma ordem em que grandes potências egoístas continuam assumindo um papel desproporcional, especialmente na proteção de seus próprios interesses. Isso sempre foi assim. O melhor que podemos esperar é que os membros com poder de veto um dia vejam a necessidade de trabalhar unidos.
Porque, quando os grandes elefantes brigam e se esmagam, não há progresso, pelo menos enquanto não se acalmarem. Mas mesmo este frustrante processo ainda é melhor do que um estouro desses grandes e quase sempre imprevisíveis animais, fugindo em debandada do circo.