Título: Uma lição de realismo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/08/2006, Notas e Informações, p. A3
A declaração não poderia ser mais franca e direta. ¿Não se enganem, Brasil e Índia são concorrentes¿, disse o vice-ministro de Comércio indiano, Jairam Ramesh. ¿A idéia de que Índia e Brasil são aliados naturais é um pouco ingênua¿, acrescentou. Em sua entrevista à repórter Patrícia Campos Mello, do Estado, o vice-ministro Ramesh não usou meias palavras para confirmar o que sabe muito bem qualquer pessoa sensata, mas que o governo brasileiro, perdido em sua fantasia terceiro-mundista, insiste em desconhecer. Esse é o efeito deletério da diplomacia orientada pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Os indianos, assim como os chineses, sul-africanos e outros países emergentes, têm uma clara percepção de seus interesses, avaliam com realismo o que podem ganhar em cada circunstância e não se deixam levar por ilusões ideológicas. Têm, portanto, uma escala de prioridades muito diferente daquela que tem guiado a diplomacia petista, uma das últimas, no mundo, que ainda misturam bandeiras políticas e objetivos econômicos.
Em setembro, desembarcarão em Brasília o primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, e o presidente sul-africano, Thabo Mbeki. O encontro com o presidente Lula deverá servir para a assinatura de acordos de cooperação e para a instituição de um grupo de trabalho tripartite, que deverá projetar um acordo de livre-comércio entre Mercosul, Índia e União Aduaneira da África Austral (Sacu), formada por África do Sul, Botsuana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia. Todos poderão ganhar com a maior cooperação, com a troca de investimentos e com a ampliação do comércio, mas ninguém deveria superestimar as possibilidades de uma aliança com parceiros como esses.
Para os países da África Austral, o objetivo mais importante, já se sabe há muito tempo, não é a integração com o Mercosul, mas a intensificação do comércio com os EUA e com a Europa. Também os indianos não se deixam levar por ilusões. Conhecem as oportunidades de negócios com o Brasil e várias de suas grandes empresas terão representantes na comitiva de Manmohan Singh. Mas a Índia não confunde os seus interesses comerciais com os do Brasil e sabe que as divergências objetivas são consideráveis. ¿Competimos em manufaturas, temos interesses diferentes em agricultura e em serviços queremos uma abertura mais rápida que os brasileiros¿, disse Jairam Ramesh na entrevista ao Estado. Essas diferenças têm-se manifestado no G-20, formado para as negociações da Rodada Doha.
Brasil e Índia têm atuado em conjunto quando se trata de pressionar os europeus e americanos para que reduzam os subsídios à agricultura e eliminem barreiras a produtos exportados pelas economias em desenvolvimento. Mas divergem na hora de apresentar concessões comerciais. Os indianos preferem proteger sua agricultura. Para os brasileiros, mais competitivos no agronegócio, o jogo aberto é mais interessante. Mas tem prevalecido, na ação do G-20, a posição indiana. Isso mostra que a liderança brasileira é muito menos efetiva, no G-20, do que geralmente se afirma. A resistência indiana à abertura de seus mercados agrícolas acaba enfraquecendo a posição negociadora do G-20, quando se trata de pôr sobre a mesa, diante de americanos e europeus, as ofertas comerciais.
Ao mesmo tempo, brasileiros e indianos têm divergido quanto às concessões que podem apresentar nas negociações sobre serviços. Nesse tópico, o Brasil até poderá tornar-se mais flexível. Mais difícil será o governo indiano abandonar a posição defensiva em matéria de comércio agrícola.
Também na multiplicação de seus pactos comerciais a diplomacia indiana tem sido mais objetiva que a brasileira. Já firmou acordos com as economias emergentes do Sul da Ásia, negocia um tratado de livre-comércio com a Asean e planeja entendimentos com o Japão, a Coréia do Sul e países do Golfo Pérsico.
¿Do ponto de vista econômico¿, disse Jairam Ramesh, ¿o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) é um pouco fictício.¿ Pode servir, admitiu, para ressuscitar o velho movimento dos não-alinhados - em que a Índia, e não o Brasil, teve alguma liderança. Mas comércio é outro assunto. Os indianos sabem disso. No Palácio do Planalto, prefere-se ignorar esse fato da vida.