Título: Fidel e a esquerda brasileira
Autor: Carlos Maurício Ardissone
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

O repentino anúncio da transmissão de poderes de Fidel Castro ao seu irmão Raúl, por conta de problemas de saúde enfrentados pelo líder cubano, suscitou uma enxurrada de prognósticos acerca do futuro político da ilha caribenha e das reais possibilidades de perpetuação do regime socialista, tendo em vista o papel proeminente que o governo dos Estados Unidos e os cubanos residentes na Flórida pretendem assumir num possível cenário de transição política.

O fato é que qualquer debate sobre Cuba desperta reações apaixonadas de seguidores e opositores do "comandante" e está carregado de forte peso ideológico, algo raro no mundo ocidental de hoje, cada vez mais caracterizado pela despolitização e pela consagração de "consensos", "pensamentos únicos" e "receituários econômicos ortodoxos", traços da globalização econômica.

O cenário político brasileiro encontra-se contaminado por este raro viés ideológico. Curiosamente, apesar de particular, esse não é um fenômeno novo, ele remonta ao período de ascensão dos militares ao poder em 1964. Em meio à escalada de regimes autoritários de direita na América do Sul durante as décadas de 1960 e 1970, a Revolução Cubana surgia para setores de esquerda da intelectualidade, da classe artística e da política brasileiros como foco de resistência das esquerdas latino-americanas e como emblema de uma espécie de "utopia latina". Os guerrilheiros de Sierra Maestra pareciam legítimos herdeiros das idéias e dos valores disseminados por heróis como José Martí e Simón Bolívar. Mitificaram-se e se romantizaram as figuras de Fidel Castro e de seu companheiro Che Guevara.

Mas rapidamente restaram caracterizados a inserção subordinada de Cuba no sistema internacional da guerra fria e o alinhamento ideológico ao bloco socialista liderado pela União Soviética. Obviamente, isso pode ser creditado, em grande parte, às ameaças e investidas diplomáticas e militares dos Estados Unidos contra Cuba, principalmente após expropriações promovidas pela revolução de bens de companhias norte-americanas, até a malfadada tentativa de instalação de mísseis soviéticos em solo cubano, o que quase levou o planeta a uma guerra nuclear.

Curiosamente, a cristalização da clara relação de subordinação de Cuba à União Soviética não foi suficiente para "quebrar o encanto" da esquerda brasileira por Fidel Castro. A justificativa era a de que se tratava de uma opção de alinhamento inevitável e necessária para resistir ao "imperialismo ianque". Por mais que se possa concordar com tal diagnóstico, contudo, a via de um "socialismo dependente" - para utilizar uma expressão de Luiz Alberto Moniz Bandeira - se mostrou nociva aos interesses nacionais cubanos. A opção de Cuba por ingressar na divisão internacional do trabalho da guerra fria como exportadora de produtos primários para a União Soviética e os países da antiga cortina de ferro foi tomada à custa de um objetivo que, no início da revolução, deveria ser emergencial e irrenunciável: o de modernização de sua estrutura produtiva e construção de um parque industrial minimamente diversificado. Mas não foi o que aconteceu: Cuba manteve sua estrutura predominantemente agroexportadora e seu padrão de inserção no mercado mundial, assentado na troca de commodities por manufaturas.

As medidas "pró-mercado" adotadas a partir do início dos anos 1990 não foram suficientes para reerguer a economia cubana e atrair um volume de capitais suficiente para o país voltar a crescer. Certamente, teriam sido mais eficientes se, ao menos, o regime castrista tivesse possibilitado a emergência de uma classe média um pouco mais pujante, com acesso permitido a outros bens e serviços que não só os básicos, como educação e saúde, e com mínimo direito de acumular riqueza, aplicando-a em investimentos privados, ainda que sob a rígida tutela estatal. Nem mesmo o investimento em biotecnologia, na exportação de fármacos e medicamentos e em turismo conseguiu tirar Cuba do abismo econômico e evitar a "socialização da pobreza". Atribuir o decréscimo da qualidade de vida cubana somente ao condenável embargo econômico dos Estados Unidos seria isentar o governo de Fidel Castro da parcela de culpa que lhe cabe.

Mais preocupante, no entanto, é constatar a resistência da esquerda brasileira (políticos, acadêmicos e artistas) a admitir o óbvio: Fidel Castro é um ditador como tantos outros. Como chamar um líder que está há quase 50 anos no poder e precisa manter encarcerados presos políticos cujo único crime é o de divergir do pensamento do comando único do Partido Comunista Cubano? Como se referir a um líder que esmagou a oposição durante vários anos, não permite a liberdade de imprensa e o pluripartidarismo e utiliza a educação como meio de doutrina?

A boa vontade de nossos políticos, acadêmicos e artistas supostamente de esquerda com Fidel Castro é intolerável e contraditória. Intolerável porque todas as ditaduras devem ser condenadas, independentemente de seus matizes ideológicos e de suas possíveis realizações sociais. Contraditória porque parte daqueles que, em tese, deveriam defender a livre expressão de pensamento, até porque foram vítimas da censura e do arbítrio em passado não muito distante. Não pode a esquerda brasileira contribuir para engessar e empobrecer o debate sobre Cuba. A complexidade das relações internacionais permite que sejamos igualmente duros e críticos em relação à política externa americana para Cuba e ao regime de Fidel Castro. Simplificar o debate seria, inclusive, insultar a memória de intelectuais que ajudaram a fazer do socialismo, com suas diferentes correntes, uma alternativa política viável para muitos, ainda hoje.