Título: Dois candidatos e quatro programas
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2006, Economia, p. B2

No dia 1º de outubro, o Brasil foi dormir com a boa notícia de que haveria segundo turno na escolha de presidente. Os dois candidatos terão, afinal, a oportunidade de explicitar seus programas. No primeiro turno, Lula optou pelo rolo compressor, superestimando a sua força carismática. Geraldo Alckmin foi beneficiado, na reta final, pela reincidência do PT no submundo em que é difícil distinguir política de crime.

No segundo turno é hora de comparação de programas, de avaliação de desempenhos. Dois temas têm importância fundamental: os aspectos éticos da ação política e a natureza da futura política econômica. Não faltará quem queira dar grande peso à avaliação de outras políticas, como, por exemplo, ao fracasso retumbante da política externa do governo Lula, avaliada pela revista The Economist, com atípico comedimento, como 'ingênua'. Mas a ética e a economia tenderão a ocupar posição central no debate.

Embora a coordenação da campanha do presidente demonstre preocupação súbita com os aspectos éticos na política, a superioridade da posição ética de Alckmin é incontestável. Tem bom retrospecto como governador de São Paulo e o seu desgaste relacionado à aproximação com o casal Garotinho é baseado em conjecturas meio desesperadas sobre o que seria o seu comportamento futuro. O desgaste de Lula é com o desempenho corrupto de membros de seu governo ou de seu partido. O presidente, na defensiva, colocou-se na situação de ter de escolher entre a defesa dos seus correligionários faltosos e a admissão de ignorância que beira a inépcia. Escolheu a segunda alternativa, combinada com a ressurreição da tese parisiense de que 'política no Brasil é assim mesmo'. A campanha de Lula no segundo turno aparentemente centrará as críticas no desempenho ético nos governos de FHC, tendo as privatizações como alvo. A iniciativa parece desesperada e está com cara de mais um crasso erro estratégico do presidente e de seus principais assessores políticos. O processo de privatizações, preconceitos ideológicos à parte, foi bastante bem-sucedido quando comparado a experiências similares no exterior. É difícil imaginar que eleitores, de celular em punho, dêem crédito à tentativa de 'nivelar o campo de jogo' na base do 'nós somos corruptos, mas eles também foram'. Talvez mais importante: não está fácil associar Alckmin ao desempenho dos governos FHC, inclusive porque o apoio dos cardeais tucanos à sua campanha foi parcimonioso.

Quanto à economia, a escolha é complexa. Não é claro que os programas devam ser comparados, pois os candidatos têm relutado em se definir. Mas é possível vislumbrar dois cenários distintos para cada um. Do lado de Lula, há grande contraste entre o cenário prudente Lula A - talvez com menor probabilidade de ser, afinal, o adotado pelo candidato eleito -, baseado na continuidade de políticas macroeconômicas responsáveis, alguma flexibilização da política monetária e algum corte de gastos, e o cenário imprudente Lula B, já anunciado por Marco Aurélio Garcia, de reorientação das políticas econômicas do primeiro mandato.

O cenário Alckmin A, talvez o mais provável, seria o de prudência: continuidade da política macroeconômica, combinada com um programa de corte de gastos mais profundo, para abrir espaço para aumento do investimento e retomada do crescimento. Os defensores do cenário imprudente, Alckmin B, se têm mostrado bem mais ativos como críticos dos que vêem como elementos de sustentação de Alckmin A do que como proponentes de alternativas viáveis de política econômica. Centram a atenção em soluções mágicas para a taxa de câmbio e para a taxa de juros. As críticas ao regime cambial atual refletem saudosismo quanto à manipulação da taxa de câmbio como instrumento de subsídio discricionário a exportadores. E, na essência, as críticas à política monetária e, em parte, à cambial decorrem de sua maior tolerância com a inflação. Os defensores de Alckmin B são sanguíneos quanto ao que vêem como sua marginalização no processo decisório relacionado à política econômica desde o início dos anos 1990. Este desgosto, contudo, não faz com que as suas propostas macroeconômicas adquiram consistência.

Cenários prudentes dominam cenários imprudentes: não há justificativa para que se comprometa o principal resultado da política econômica alcançado nos últimos 12 anos. Assim, com Alckmin como ponto de referência, o cenário Alckmin A domina claramente Lula B. Domina também Lula A, dadas a sua maior probabilidade de ocorrência quando comparado a Lula A e a possibilidade de mudança de outras políticas que se revelaram especialmente desastrosas no primeiro governo Lula. Da mesma forma, a comparação dos dois cenários imprudentes - Alckmin B e Lula B - beneficia o candidato da oposição, dadas a probabilidade mais baixa de ocorrência de Alckmin B e a possibilidade de corrigir outras políticas adotadas por Lula em 2003-2006. A comparação entre Lula A e Alckmin B - com probabilidade de ocorrência talvez similar - é mais complexa. Mesmo que Alckmin tivesse muito sucesso na correção de políticas do primeiro mandato de Lula que transcendessem a economia, seria difícil que isso compensasse os danos decorrentes da adoção de política econômica baseada em quiméricos e discricionários juros baixos e câmbio alto fixados por decreto. Talvez isto seja um bom argumento para que Alckmin aproveite o espaço político que conquistou, relativamente livre de compromissos com caciques tucanos, e acabe por fazer ouvidos moucos a propostas que envolvam reviravoltas na condução da política econômica, abandonando Alckmin B, caso eleito.