Título: Legacy era um carro na contramão
Autor: Valéria França
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2006, Metrópole, p. C1

Imagine um carro que segue por uma rua na contramão e bate de frente com outro veículo. O motorista sai do automóvel e culpa o guarda de trânsito pelo acidente. Guardadas as devidas proporções, o raciocínio explica em parte o acidente que envolveu o vôo 1907 da Gol e o jato Legacy no dia 29, que deixou 154 pessoas mortas, na divisa entre Pará e Mato Grosso.

'O piloto, a maior autoridade de um avião, sabe muito bem quando está na mão ou na contramão de uma aerovia ', diz José Carlos Pereira, presidente da Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero). As aerovias funcionam como avenidas, com sentidos previamente estabelecidos pelas leis de trânsito. No trecho entre Manaus e Brasília, as ímpares são usadas apenas pelos aviões que trafegam do norte para o sul e as pares, do sul para o norte. 'Todo piloto sabe disso', diz o brigadeiro Pereira, que trabalhou como piloto a maior parte de sua carreira.

O Legacy estava a 37 mil pés, a mesma altitude do Boeing, portanto, na contramão. Conforme seu plano de vôo - que saiu de São José dos Campos, interior de São Paulo -, o jato deveria começar a voar a 36 mil pés de altitude a 400 quilômetros antes do local do acidente. 'Assim que mudou de proa, na região de controle do Cindacta-1, o jato deveria diminuir de altitude', diz Jorge Eduardo Leal Medeiros, professor de Transporte Aéreo e Aeroportos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Os controladores de vôo funcionam como guardas de trânsito. Ficam em terra de olho no tráfego aéreo com a ajuda de radares. Em monitores de 28 polegadas, recebem os sinais de todos os aviões que estão em sua região, com dados precisos de altitude, velocidade e número do vôo. O sistema de gerenciamento de tráfego aéreo é formado por três centros de controle. Em cada aeroporto, área de maior concentração de fluxo aéreo, funciona uma unidade do APP (Controle de Aproximação), responsável pela organização do espaço aéreo num raio de 200 milhas.

A 200 milhas dos aeroportos, saem as aerovias, que ficam sob a responsabilidade dos operadores dos Cindactas (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo). Há quatro Cindactas no País. Cada piloto voa em altitudes diferentes estabelecidas pelos planos de vôo. É muito difícil ocorrer acidentes nas áreas sob a proteção dos Cindactas.

Os aviões possuem dois tipos de banda (Very High Frequencye ) e UHF (Ultra High Frequencye). A primeira é ideal para a comunicação em distâncias curtas, e a segunda, em distâncias longas. O rádio do Legacy pode, sim, não ter funcionado por algum motivo. 'Há chances de o controlador de vôo ter errado ou não se comunicado bem em inglês com o piloto do jato que era americano', diz Hernandez Pereira da Silva, diretor técnico do Sindicato Nacional dos Trabalhadores na Proteção ao Vôo. A maioria deles fala o inglês básico.

O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos Bueno, disse que o objetivo principal das investigações sobre o acidente não é apontar culpados, mas esclarecer quais foram as causas dos acidente. O militar confirmou que as caixas-pretas do Legacy já foram enviadas para análise no Canadá.

Bueno justificou a escolha afirmando que o Canadá é um 'lugar neutro', além de ser a sede da Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci). No mesmo laboratório, está sendo analisada a caixa-preta do Boeing da Gol.

Bueno evitou comentar a pressão que alguns congressistas americanos vêm fazendo para que os dois pilotos do Legacy sejam liberados pelas autoridades brasileiras para voltar aos Estados Unidos. Para ele, a presença dos pilotos no Brasil ajuda na apuração do acidente.

Mais 80 militares partiram ontem de Manaus para Mato Grosso. Eles fazem parte da terceira equipe de resgate enviada pelo Comando Militar da Amazônia (CMA) ao local do acidente. A equipe pertence ao Primeiro Batalhão de Infantaria de Selva e foi treinada para enfrentar as adversidades da floresta.