Título: Herdeiros de ditadores disputam poder em eleições no Congo
Autor: Mariana Della Barba
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2006, Internacional, p. A7

'Buraco negro' é uma expressão usada para definir países com Estado falido, problemas crônicos de saúde, educação, segurança e que são terreno fértil para guerrilhas. A República Democrática do Congo (antigo Zaire) tem a chance de começar a sair de seu 'buraco negro' hoje, quando será realizado o segundo turno das primeiras eleições livres no país em 46 anos.

Alguns números mostram por que não é exagero usar a expressão para caracterizar esse país africano de 60 milhões de habitantes e um dos mais pobres do Hemisfério Ocidental, com renda per capita de US$ 770. Entre 1998 e 2003, o Congo mergulhou numa guerra civil que envolveu, direta ou indiretamente, outros cinco países (Ruanda, Angola, Uganda, Zimbábue e Namíbia) e deixou 4 milhões de mortos - nada menos que o pior conflito no mundo desde a 2ª Guerra.

A ONU mantém no país o maior contingente de soldados em missão de paz, cerca de 17 mil capacetes azuis. Ainda assim, 1.200 congoleses morrem por dia - de fome, AIDS, malária ou violência étnica e tribal - e há 11 mil crianças-soldados.

Disputam a eleição dois candidatos de biografias ligadas ao passado de ditadura e genocídio que marcam a história do Congo. O atual presidente, Joseph Kabila, de 35 anos, é o favorito. Filho de Laurent Kabila (1997-2001), cujas medidas autoritárias ajudaram a arrastar o país para a guerra, ele obteve 45% dos votos no primeiro turno. Seu adversário é Jean-Pierre Bemba, de 45 anos. Ex-líder rebelde, ele é afilhado político de Mobuto Sese Seko - um dos ditadores mais corruptos do século 20 e que ficou 32 anos no poder. Bemba é acusado de crimes como tráfico humano, estupro e assassinato. Se perder a eleição e a imunidade, pode se mudar para o Brasil, já que sua mulher é brasileira.

'A eleição é o primeiro passo na direção certa', disse ao Estado o inglês Jason Stearns, chefe no Congo do International Crisis Group - uma organização não-governamental que busca solucionar conflitos. 'A curto prazo, a eleição pode gerar instabilidade. Mas a longo prazo é o começo da formação de um Estado', disse Stearns, em entrevista por telefone da capital, Kinshasa.

O otimismo de Stearns, porém, não é consenso entre os analistas do Congo. 'Temos de ser realistas', disse ao Estado a escritora e jornalista belga Marie-France Cros, autora do livro Géopolitique du Congo. 'No poder há cinco anos, Kabila está longe de ser um exemplo. Também não se pode esperar nada de candidatos a cargos no Legislativo que entram na política só pelo salário.' Numa economia dilacerada pela guerra, o Estado é o principal provedor de empregos no Congo.

Os dois analistas admitem que a violência pós-eleição é quase inevitável. No primeiro turno, conflitos entre as milícias dos candidatos deixaram 30 mortos. 'No Congo, aceitar a derrota sempre foi um problema, já que o costume é que vencedor acabe com o vencido', diz Cros. Tanto Kabila como Bemba asseguram que vão respeitar o resultado das urnas. Mas diante da falta de tradição democrática no país, é possível que o Congo mergulhe em um novo ciclo de violência.