Título: Um muro de mentiras
Autor: Mario Vargas Llosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2006, Internacional, p. A10

O Congresso dos Estados Unidos aprovou a construção de um muro de mais de 1.100 quilômetros na fronteira com o México, ao custo de US$ 6 bilhões, para deter a imigração ilegal, e o presidente George W. Bush promulgou a lei na quinta-feira. Para alguém, como este que escreve, fascinado pela contaminação da realidade pela ficção, a notícia não pode ser mais encantadora.

Por quê? Porque este muro jamais será construído e, se por milagre chegar a sê-lo, não servirá para absolutamente nada. Todo mundo sabe disso, a começar, é claro, pelos legisladores que aprovaram a lei e o próprio líder americano.

Para que, então, toda essa representação teatral? Porque em 7 de novembro realizam-se nos Estados Unidos eleições para renovar totalmente a Câmara dos Representantes e parcialmente o Senado e os governos estaduais, e os congressistas que buscam a reeleição querem esgrimir esta lei como uma prova de que começaram a atuar energicamente contra este perigoso demônio que são os imigrantes ilegais, que tiram trabalho dos americanos e esgotam a previdência social (outra ficção).

O muro de mentiras passará por quatro Estados - Arizona, Califórnia, Novo México e Texas - e será formado por duas cercas e um futurista sistema de refletores, grades, sensores e todo tipo de radares, a fim de ser absolutamente intransponível. No entanto, para que servirá fechar dessa maneira esses 1.100 quilômetros quando sobram outros 2.000 quilômetros de fronteira aberta, pela qual os imigrantes mexicanos, centro e sul-americanos poderão infiltrar-se em território americano sem maiores problemas se quiserem evitar os inconvenientes de transpor o setor cercado?

Mas estas são conjecturas sem maiores raízes no mundo real, onde a construção deste muro de ficção precisaria, para se materializar, vencer uma miríade de obstáculos já antecipados na mídia dos Estados Unidos, que - confesso - leio, ouço e assisto em jornais e emissoras de rádio e televisão com verdadeira fruição.

Até agora, inúmeros prefeitos e governadores dos quatro Estados que serão atravessados pelo muro já fizeram saber que exigirão que este investimento bilionário seja antes dedicado a obras de infra-estrutura - estradas, escolas, instalações de serviços públicos - e várias comunidades nativas levantaram a voz, ameaçando com ações judiciais para impedir que o muro frature suas terras de cultivo ou gado, enquanto outras áreas, deixadas de lado no traçado do muro de fantasia, ameaçam exigir judicialmente que este seja retificado, porque as discrimina.

CLÁUSULA ENGANADORA

Mas foram sobretudo as poderosas instituições ecológicas que saíram a público, explicando que usarão todos os recursos políticos, judiciais e cívicos para impedir que se levante este monumento depredador e contaminador, que causaria estragos no meio ambiente. O maravilhoso é que os legisladores, por precaução, incluíram na lei uma cláusula enganadora permitindo que o governo dedique parte do orçamento do muro à construção de estradas!

Se o muro em questão sobreviver ao mar de obstruções judiciais que o aguarda - e que, de todo modo, paralisará sua construção por muitos anos -, não servirá de jeito nenhum para impedir a entrada de imigrantes sem documentos nos Estados Unidos. Existem incontáveis maneiras de demonstrar algo que está aí, na frente de qualquer um que tenha o mínimo de inteligência e não esteja cegado pelos preconceitos, esta ficção maligna segundo a qual os imigrantes trazem mais prejuízos que benefícios ao país hospedeiro.

Nesta manhã, a imprensa aqui de Washington observa que, segundo um informe oficial, os imigrantes 'hispânicos' enviaram no último ano a suas famílias na América Latina a soma astronômica de US$ 45 bilhões, cerca de 60% mais que há dois anos, quando havia sido feita a pesquisa anterior. Desta quantia, os preconceituosos deduzem que os imigrantes estão provocando uma sangria terrível do patrimônio americano.

CONTRIBUIÇÃO VALIOSA

Mas a verdadeira leitura dessa cifra dever ser, antes, de admiração e entusiasmo, pois ela quer dizer que os imigrantes de origem latino-americana produziram no último ano, para os Estados Unidos, uma riqueza quatro ou cinco vezes maior, que permaneceu aqui e serviu para aumentar a renda nacional. E US$ 200 bilhões ou US$ 250 bilhões são uma contribuição valiosa a uma economia que, como provam todas as estatísticas, goza nestes momentos de uma bonança extraordinária e tem o maior índice de emprego de todos os países desenvolvidos (apenas cerca de 4,5% de desemprego).

No entanto, para entender por que este muro imaginário será inútil - uma involuntária escultura ondulada subindo e descendo pelas gargantas e montanhas do Arizona e cicatrizando os desertos californianos e texanos -, mais que as estatísticas, que raramente convencem alguém, é melhor contar a história de Emerita (vou chamá-la assim porque conheço várias guatemaltecas que têm este lindo nome). Conhecemo-nos há três anos, quando passei outro semestre aqui em Washington, como passo agora.

ESPERANÇA

Emerita nos foi recomendada por uns vizinhos cuja casa ela limpava duas vezes por semana. Nós a contratamos e ela prestou um serviço magnífico, pois nas duas horas que passava entre nós com suas lustradoras e vassouras elétricas e espanadores, deixava a casa asseada como um açougue suíço. Então nos cobrava US$ 60 por aquelas duas horas.

Tivemos a sorte de contratá-la de novo e ela agora nos cobra US$ 90 por vez. Na verdade, nos faz um desconto, pois todos os nossos vizinhos lhe pagam US$ 100 pelo serviço (feito, na imensa maioria dos casos, por imigrantes hispanics). Emerita é uma centro-americana que está há dez anos nos Estados Unidos e se vira bastante bem com o inglês. Tem uma caminhonete Buick último tipo e uma parafernália ultramoderna para varrer, lustrar, limpar, molhar e sacudir.

Aos sábados - ela trabalha seis dias por semana e descansa no domingo -, conta com a ajuda do marido, que no resto da semana trabalha como jardineiro. Não sei quanto ele ganha, mas Emerita limpa em média quatro casas por dia, às vezes cinco, o que significa uma renda mensal que não fica abaixo de US$ 8 mil. Por isso, ela e o marido já puderam comprar uma casa aqui em Washington e outra em seu país de origem. Antes de vir para os Estados Unidos, o casal sobrevivia a duras penas. Mas o pior, diz Emerita, não era isso, e sim que 'não havia nenhuma esperança de melhora no futuro. Esta é a grande diferença em relação aos Estados Unidos'.

Sim, essa é, de fato, a enorme, a sideral diferença, e esta é a razão pela qual milhares, dezenas de milhares, milhões de latino-americanos, que conhecem muito bem a história de Emerita e seu marido, seguem seus passos e escapam desses países-armadilhas, onde não há esperança, e aventuram-se neste, cruzando rios, escalando montanhas, escondidos em furgões ou pagando as incontáveis e eficientíssimas máfias que lhes falsificam passaportes, vistos, permissões e tudo que lhes falte para poder entrar aqui, onde - eles sabem disso e por isso vêm - são esperados de braços abertos. A prova é que todos conseguem trabalho quase de imediato.

Os trabalhos que os americanos não querem fazer, é claro. Limpar casas, cuidar de doentes, ser guardas noturnos, arder em pleno sol nas colheitas e, nas fábricas e lojas, fazer as tarefas mais elementares e precárias.

Ninguém além deles está disposto a fazer essas coisas duras e, para os níveis de vida deste país, mal pagas. Para eles não é isso, para eles esses salários ruins são fortunas. E por isso os mesmos cidadãos que arrancam os cabelos falando dos perigos da imigração os contratam sem pestanejar, pois graças às Emeritas têm suas casas brilhando, suas fábricas funcionando e milhares de instituições e serviços em plena atividade.

QUESTÃO DE OPORTUNIDADE

A única forma de deter a imigração é o México e as Américas Central e do Sul começarem a oferecer, a suas massas paupérrimas, oportunidades melhores e essa esperança de avanço e promoção que os hispanics encontram nos Estados Unidos e é o grande incentivo para eles trabalharem arduamente, dia e noite, no que estiver disponível. É maravilhoso para eles, sem dúvida, mas é ainda mais para este país - um país de imigrantes, não se pode esquecer -, que, graças à força e ao espírito de sacrifício desses 40 milhões de latino-americanos, continua crescendo e prosperando, apesar dos dificílimos problemas políticos e internacionais que hoje enfrenta.

Esses US$ 6 bilhões do muro das mentiras prestariam um serviço muito mais efetivo em relação à imigração ilegal se, em vez de dissipados numa ficção de cimento - que, existindo, se transformará em pouco tempo em um muro com mais buracos que um queijo gruyère -, fossem investidos em fábricas ou créditos destinados a criar postos de trabalho do outro lado da fronteira, ou esta se abrisse de par em par aos produtos latino-americanos, o que, além do mais, beneficiaria enormemente os consumidores locais.

Mas tudo isso pertence ao domínio da estrita realidade, e é sabido que os seres humanos - inclusive os gringos, que se vangloriam de ser tão pragmáticos - preferem com freqüência a magia da ficção à vida crua tal como é.