Título: Em Cuba, saída ilegal é `pela esquerda¿
Autor: Manuel Roig-Franzia
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2006, Internacional, p. A15

Quase toda manhã, uma mulher de olhos castanhos inquietos demora-se numa esquina de uma feira de rua sob o calor úmido de Havana. Ela faz uma pose casual, à espera dos fregueses. Se ela acena com a cabeça, os clientes a seguem até uma rua secundária. Depois de olhares rápidos e nervosos, a mulher enfia a mão na blusa. Do sutiã, retira o produto do contrabando - sacos plásticos de compras cuidadosamente dobrados, ilegais fora das lojas estatais. Cinco por um centavo de dólar.

A transação, como inúmeras outras que ocorrem a cada dia em Havana, realiza-se ¿por la izquierda¿, ou ¿pela esquerda¿. Os cubanos usam a expressão para descrever as transações ilegais, grandes ou pequenas. Eles conspiram pela esquerda para enfrentar a escassez crônica de vários itens e driblar inúmeras regras que proíbem quase toda forma de empreendimento privado e governam cada detalhe da vida cotidiana.

Os cubanos buscam praticamente qualquer coisa pela esquerda: produtos essenciais, como arroz e feijão; itens do cotidiano, como os sacos plásticos; e prazeres proibidos, como uma lagosta ou a rara carne bovina. Pela esquerda, assumem o risco de ser multados ou condenados à prisão para assistir a novelas captadas por parabólicas ilegais, espiar sites restritos na internet e cozinhar ¿batatas secretas¿ compradas depois de atingido o limite dos cartões de racionamento que ditam os hábitos de compra de todos no país. Mães com crianças de menos de 7 anos - as únicas cubanas que podem comprar leite com desconto nas lojas estatais - chegam a vender suas cotas a preços inflacionados a fim de reunir dinheiro para a comida extra.

A próspera economia clandestina funciona como um bolsão de capitalismo, guiado pela oferta e pela procura, no único Estado comunista do Hemisfério Ocidental. Observadores dizem que ela pode ser precursora de um movimento rumo a uma economia de mercado, que poderia se acelerar depois da morte do presidente Fidel Castro; por outro lado, afirmam eles, o mercado negro pode ser simplesmente um subproduto de um sistema que recompensa quem é esperto e tem boas relações.

¿Eles são muito empreendedores¿, disse Wayne Smith, ex-chefe do Escritório de Interesses dos EUA em Havana. ¿Quando vou a Cuba, tenho a impressão de que todos esperam algo acontecer. Há uma sensação de que mudanças estão próximas.¿

Enquanto o mundo pergunta como poderia ser uma Cuba pós-Fidel, a resistência da cultura do mercado negro mostra quão longe os cubanos se dispõem a ir para driblar as ordens do presidente. Mas também expõe certa elasticidade no controle governamental da ilha.

Algumas das transações pela esquerda, embora ilegais, são claramente toleradas. Às vezes acontecem na frente de policiais uniformizados ou à vista da rede menos evidente, mas igualmente onipresente, de informantes do bairro. A sensação de tolerância, contudo, pode desaparecer abruptamente. Em agosto, logo depois de Fidel ter sido submetido a uma cirurgia intestinal e abandonado o poder durante a recuperação, autoridades varreram bairros numa campanha contra parabólicas ilegais. Os agentes presumivelmente empenhavam-se em bloquear transmissões noticiosas externas - cheias de rumores de que Fidel teria morrido ou sofreria de câncer terminal - que poderiam pôr em dúvida as otimistas versões oficiais. Ao saber da campanha, os cubanos correram para desmontar antenas que eram segredos abertos, escondendo-as.

¿O engraçado é que eles pensam que queremos assistir aos noticiários de Miami¿, afirmou um funcionário público portuário que mora num subúrbio de Havana. ¿Mas tudo que minha mulher quer ver são as novelas.¿

O governo diz que as restrições que empurram tantos cubanos para a esquerda são, em alguns casos, resultado do embargo comercial dos EUA e, em outros, um contra-ataque na guerra de propaganda de quase meio século entre os dois países. As parabólicas são proibidas a fim de bloquear a TV Martí, emissora do governo americano que transmite programação criticando Fidel, disse em entrevista o presidente da Assembléia Nacional, Ricardo Alarcón. O uso da internet é restrito, afirmou ele, porque o embargo impede Cuba de aproveitar cabos de alta velocidade em águas internacionais. Quando surge o assunto do racionamento de comida, Alarcón aponta invariavelmente para o embargo americano.

Até mesmo cubanos que criticam o governo de Fidel são veementemente contra o embargo. Suas incursões no mercado negro se mostram como silenciosos atos de rebeldia contra a política dos EUA e as restrições impostas por Fidel.

Redes completas desenvolveram-se para alimentar o sistema do mercado negro. Há os fornecedores, que desviam materiais de empresas estatais. E há os intermediários, que compram os bens roubados e os revendem. Numa tarde recente em Cojimar, cidade próxima de Havana famosa como refúgio de Ernest Hemingway, um intermediário sentava-se sem camisa em sua sala de estar, fazendo gestos para os transeuntes. Ele fez sinal de positivo com o polegar para um homem que procurava um frango. ¿Aqui, tudo é pela esquerda¿, disse ele, mostrando sua modesta casa e gritando para se fazer ouvir em meio a um filme de Steven Seagal que conseguira com um vendedor de DVDs ilegais.

A casa, outrora metade do que é hoje, foi ampliada graças a várias dúzias de sacos de cimento recebidos de ¿alguns rapazes¿, um de cada vez, ao longo de mais de um ano. Seus rapazes enchiam os bolsos de cimento ao fim de cada dia de trabalho, até que acumulassem o suficiente para um saco. O congelador da família estava repleto de frangos à espera da revenda, enquanto a geladeira guardava três grandes pudins, pois o intermediário encontrara uma boa quantidade de ovos. ¿É uma arte¿, disse ele, acomodando-se numa cadeira reclinável. ¿Nem todo mundo consegue vender como eu.¿