Título: Do sertão do Nordeste ao sindicato no ABC
Autor: Clarissa Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2006, Especial, p. H4
Foi dali daquela encruzilhada, onde se vê hoje um barraco em ruínas, que Dona Lindu partiu, em 1952, com seus sete filhos num pau-de-arara, viagem de 13 dias até São Paulo, comendo só banana, rapadura e farinha. Lula era o penúltimo dos irmãos, aquele que o pai, Aristides, deixou na barriga da mulher e fugiu com uma prima dela, Dona Mocinha, em 1945, menos de um mês antes de ele nascer. O barraco da encruzilhada é a lembrança que ficou da bodega do Tozinho, o comerciante amigo que abrigou Dona Lindu e sua família, umas 12 pessoas, contando outros parentes, num quartinho de depósito, enquanto o caminhão não aparecia.
'Se eu nascesse aqui agora, ia ter de sair de novo', comentou Lula para o primo José Florêncio Filho, o Duda, 50 anos depois, ao rever o cenário miserável de sua infância. O asfalto passa ali perto, a menos de 2 quilômetros de distância, acesso fácil a Caetés, hoje município autônomo e sede de comarca, cada vez mais independente de Garanhuns, ao qual pertencia naquela época. Mas Vargem Comprida, o sítio onde Lula nasceu, continua igual. José Luiz dos Santos, um dos herdeiros do pedaço de terra que Dona Lindu vendeu por 13 mil cruzeiros - a terra, mais o relógio, o jumento, os santos , os retratos, tudo o que tinha, para deixar o Nordeste -, cultiva mandioca e feijão na roça de chão arenoso. 'A primeira coisa que eu me lembro, toda vez que alguém me pergunta da minha infância, é exatamente o fato de eu não ter tido infância', é assim que Lula, ou só Luiz Inácio da Silva, começa a contar sua vida numa série de entrevistas para o livro Lula, o filho do Brasil, que a jornalista Denise Paraná publicou pela Editora Fundação Perseu Abramo. Somando outros depoimentos - a autora ouviu seis irmãos de Lula, um cunhado e a mulher, Marisa Letícia -, o livro reconstitui os primeiros anos do presidente no sertão. Os testemunhos dessa história oral contêm valiosas revelações.
Por exemplo, este incidente que Maria Ferreira Moreno, ou Maria Baixinha, a irmã que mais conviveu com Lula, contou em abril de 1994, na entrevista gravada para o livro. 'Uma vez, uma jumenta mordeu o Lula. Quase matou ele. Estava eu, o Lula e o Ziza. Ele ia passando, tinha que idade? Quatro anos ele tinha. A gente vinha da casa do meu tio. Não morreu por milagre de Deus! A jumenta segurou o Lula com a boca e tiveram de dar uma facada no pescoço dela para ela poder largar ele.'
Os meninos de Dona Lindu comiam feijão com farinha, uma espécie de bolo que ela amassava com a mão. O prato só variava quando os irmãos mais velhos caçavam preá e rolinha para servir de mistura, a carne do almoço. 'Passar fome, Lula não passou, porque sempre tinha mandioca', testemunha Duda, o primo sete anos mais velho, que conviveu com o presidente em Vargem Comprida e mais tarde morou perto dele na Vila Carioca, em São Paulo, onde passou uma temporada.
De Vargem Comprida até Vila Carioca, foi um pedaço de chão e de muita luta. Dona Lindu ficou grávida mais uma vez, quando o marido reapareceu em casa, depois de uns cinco anos de sumiço. Ele tinha outra família em São Paulo, a de Dona Mocinha, mas a mulher nem desconfiava da prima. Depois que Ruth - ou Tiana, de Sebastiana, seu outro nome - nasceu, Jaime, o filho que já havia migrado para o Sul, sugeriu que a mãe também fugisse da seca de Pernambuco. Escreveu em nome de Aristides, como se ele estivesse mandando. O pai analfabeto, que só queria enviar notícias, não descobriu o que a carta dizia.
'Cadê o cachorro?', perguntou Aristides, quando a mulher desembarcou com a filharada em Santos. 'Meu pai ficou nervoso, porque minha mãe não trouxe o cachorro', recorda-se Lula. Instalou Dona Lindu, a mulher legítima, na casa principal e mandou a outra, Dona Mocinha, para um bairro de Vicente de Carvalho, que então se chamava Itapema. 'Minha mãe se queixava muito de que ele tratava a outra mulher melhor do que ela, que as frutas que iam para a outra eram melhores.' Aristides mantinha as duas famílias. 'Ele ficava dois dias numa casa com a minha mãe, dois dias com a outra.'
E mais filhos foram nascendo. 'Eu não sei quantos irmãos eu tenho. Acho que uns oito ou dez', disse Marinete, a irmã mais velha, referindo-se aos meio-irmãos, filhos de Dona Mocinha. 'Minha mãe teve 12 filhos, contando os que morreram', acrescentou, falando agora de Dona Lindu. Os dois que morreram eram gêmeos, um menino e uma menina. Nasceram em casa e resistiram só algumas semanas, enquanto a mãe era internada num hospital. Dona Lindu sofria muito para criar os filhos, mas lutava. Em Santos, catava grãos de café no chão do cais do porto para fazer algum dinheirinho.
Lula vendia tapioca, laranja e amendoim. 'Esse foi meu primeiro trabalho, eu não tinha nem 8 anos.' Estudou dois anos em Itapema e veio fazer a terceira e a quarta séries na Vila Carioca, quando a família se mudou para São Paulo. Depois se matriculou no Senai. 'Eu aprendi a profissão de torneiro-mecânico e pronto: aí mudou a minha vida.' Tinha 15 anos. Foi trabalhar numa fábrica, não precisava mais ser engraxate nem vender tapioca.
Dona Lindu já havia saído de casa para morar com os meninos num barraco. Não agüentava mais Aristides, um homem violento que não deixava faltar comida na mesa, mas tratava mal os filhos. O pai, na lembrança de Lula: 'Ele brigava muito. Invocava muito com minhas irmãs, com todo mundo. Tanto é que o coitado morreu como indigente. Meu pai morreu em 1978 como indigente.'
Lula arranjou uma vaga na Fábrica de Parafusos Marte e depois se transferiu para a Fábrica Independência. Foi nela que perdeu o dedo. 'Eu trabalhava como torneiro-mecânico à noite. Um dia quebrou o parafuso do estampo e largou o braço da prensa. A prensa fechou e esmagou o meu dedo', relata Lula, no livro de Denise Paraná. 'Eu fiquei esperando horas de madrugada, até chegar as 6 horas da manhã para o dono chegar e me levar no médico. Chegando no hospital, o médico olhou o meu dedo e cortou o resto... Com esse acidente eu ganhei uma indenização. Foram 350 mil cruzeiros na época. Com esse dinheiro deu para eu comprar móveis para minha mãe e comprar um terreninho.'
Lula estava 'na caixa', de licença médica, quando conheceu Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari, que virou seu cunhado e amigo. Lambari era irmão de Maria de Lourdes, a primeira mulher de Lula, com quem viveu dois anos. Grávida de sete meses, Lourdes pegou hepatite e morreu no hospital, ela e o neném. Lula ficou transtornado. 'Ao saber da morte de minha irmã, ele começou a chorar, bateu a cabeça nas paredes e vomitou muito', lembra o cunhado.
Lourdes, que era operária tecelã, não queria que Lula entrasse para o sindicato. Foi Frei Chico, irmão dele que já era militante do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, quem insistiu. 'Eu queria ser um bom profissional, ganhar meu salário, viver minha vida. Ter filhos. Nada disso de ser liderança sindical me passava pela cabeça.' Lambari se lembra bem dessa resistência e deu boas gargalhadas quando, recentemente, Lula brincou com ele, perguntando se podia imaginar, naquela época, que um dia fosse ser presidente do Brasil.