Título: País avança no terceiro milênio com debate agrário do século 19
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2006, Especial, p. H15
Na terça-feira, em Paris, ao participar de uma feira internacional voltada para o mercado de carnes, o ex-ministro Marcus Vinicius Pratini de Moraes ficou muito bem impressionado com o respeito que o setor agropecuário brasileiro desperta no exterior. 'O mundo precisa do Brasil para comer', comentou. 'Somos a última fronteira agrícola do mundo e, em termos líquidos, os maiores exportadores de alimentos. Eles conhecem nosso potencial e sabem que podemos nos tornar cada vez mais competitivos.'
No mesmo dia, na região do Pontal do Paranapanema, no extremo oeste do Estado de São Paulo, um pelotão de quase 300 pessoas, organizadas pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), invadiu três propriedades rurais, exigindo que fossem desapropriadas e destinadas à reforma agrária. Não foi uma novidade. As invasões são rotina na região, onde os sem-terra põem em dúvida os títulos de propriedade, invadem as terras e acabam sendo acusados de prejudicar a produção agrícola.
Essas duas faces da questão agrária apareceram de diversas maneiras no decorrer da campanha eleitoral. Entre outras coisas, enquanto de um lado o MST conclamava os militantes a fazer campanha a favor de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do outro lado Geraldo Alckmin (PSDB) recebia o apoio de ruralistas dos Estados mais produtivos. Descontentes com a política agrícola de Lula e com a leniência que teria sido empregada no trato das invasões de propriedades pelos sem-terra, eles não mostraram disposição para dialogar com o candidato à reeleição nem mesmo depois que ele ganhou a adesão de Blairo Maggi (PPS), governador reeleito de Mato Grosso e um dos maiores plantadores de soja do mundo. Traidor - foi a palavra que o governador ouviu em diferentes lugares.
Ficou exposto uma vez mais o que parecem ser dois Brasis. Num deles, o do setor agropecuário, ocorreram avanços notáveis nos últimos anos, relacionados a índices de produtividade, safras e competitividade no exterior. Se houve um setor no qual o País brigou de igual para igual e impôs respeito, como observou o ex-ministro da Agricultura, foi o do agronegócio.
Somados, os negócios ligados de forma direta ou indireta à produção rural representam 30% do Produto Interno Bruto (PIB), absorvem 37% da população ocupada e respondem por quase 50% de tudo que se exporta. Mesmo com os atuais problemas de câmbio, que reduziram a competitividade de certos produtos e constituem a base do descontentamento com Lula, a agropecuária representa melhor do que qualquer outra área a face do Brasil que dá certo.
REDISTRIBUIÇÃO
Do outro lado existe um exército estimado de 200 mil famílias - quase 1 milhão de pessoas - que estão acampadas em barracos de lona à beira de estradas e em propriedades invadidas. Elas reivindicam sobretudo a redistribuição das terras, que estariam concentradas nas mãos de poucos proprietários.
Usam como o argumento o cadastro de terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que aponta o seguinte: as propriedades maiores, com mais de 2 mil hectares, representam apenas 0,8% do total de imóveis rurais, mas se estendem por 31,6% do total de 420,3 milhões de hectares cadastrados; na outra ponta, os pequenos imóveis, com até 25 hectares, somam 57,6%, mas ocupam só 6,4% das terras.
De acordo com o MST, as 200 mil famílias acampadas representam a ponta de um exército muito maior de potenciais candidatos à reforma agrária. Os grupos que apóiam o movimento, no meio acadêmico e em ONGs, batem na mesma tecla.
No início do seu governo, Lula encomendou ao economista e petista histórico Plínio de Arruda Sampaio, aliado do MST, a preparação de um plano nacional de reforma agrária. Quando o recebeu, levou um susto: Sampaio propôs assentar 1 milhão de famílias, quase 5 milhões de pessoas, em quatro anos. Para o economista era o mínimo, pois uma reforma capaz de alterar substancialmente o atual quadro fundiário deveria envolver 5 milhões de famílias.
Lula atropelou o plano, Plínio deixou o PT e o Ministério do Desenvolvimento Agrário pôs em marcha o plano B, com a meta de 400 mil famílias (meta que corre o risco de não ser atingida, uma vez que até a semana passada tinham sido assentadas 325 mil, segundo o Incra).
No programa de governo da reeleição, Lula não falou em metas. Preparado sob a coordenação de Luiz Bianchini, diretor da Secretaria de Agricultura Familiar do MDA, o plano chama a atenção pelo detalhamento de programas destinados ao fortalecimento da propriedade familiar e pela ênfase na idéia de que a questão agrária será uma das mais importantes alavancas de inclusão social no provável segundo mandato do PT.
O programa do tucano Geraldo Alckmin, que contou com a colaboração de Pratini de Moraes, titular da pasta da Agricultura no governo Fernando Henrique Cardoso, observa que apesar dos esforços já realizados em torno da reforma agrária, persistem alguns graves problemas. Cita entre eles a violência no campo e o fato de a maioria das famílias assentadas não conseguir se inserir no mercado produtivo. Remete indiretamente à crítica de que muitos assentamentos não passam de favelas rurais.
No fundo, a campanha exibiu o aprofundamento de um fosso que, conforme observa o agrônomo Xico Graziano, ex-presidente do Incra, é alimentado mais por questões políticas do que técnicas e econômicas: 'No centro de tudo temos uma proposta de reforma agrária que está ultrapassada do ponto de vista histórico e econômico.'
Enfim, passada a eleição, permanece a impressão de que o País avança pelo século 21 com um debate que pertence aos primórdios do século passado.