Título: Sobre a tragédia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/10/2006, Notas e Informações, p. A3
Pelo número de 154 mortos e pelas circunstâncias terríveis, absurdas, em que ocorreu, o desastre com o Boeing da Gol já entra na história de nossa aviação como uma das mais dolorosas tragédias já vividas pela sociedade brasileira. Na imprensa somos obrigados a publicar, mesmo que compungidos, cenas de sofrimento humano que jamais desejaríamos expor a nossos leitores, não fosse pelo sagrado direito à informação que é ínsito à cidadania. Mas haveremos de convir que, em tragédias dessas dimensões, que geram profunda comoção pública, as primeiras vítimas fatais são a razão e a serenidade.
São acidentes que demandam acuradas investigações técnicas, às vezes de extrema complexidade, que podem durar muitos meses, mas que, antes dos laudos conclusivos, suscitam toda a sorte de especulações, palpites e 'teorias' sem comprovação, sobretudo lançando culpas 'definitivas' em pessoas ou sistemas - como que para dar resposta rápida ao sentimento de inconformismo e indignação da sociedade.
De um lado cria-se uma espécie de onda 'cívica' nacional, na acusação dos dois pilotos norte-americanos, Joe Lepore e Jan Palladino, que conduziam o Legacy - jato executivo recém-fabricado pela Embraer - a 37 mil pés, quando, por seu próprio plano de vôo de São José dos Campos a Manaus, a partir de Brasília deveria entrar em rota 'par' de 36 mil pés, visto que a aerovia Manaus-Brasília é de mão dupla e o Boeing teria que voar pela altitude 'ímpar' de 37 mil pés. Ainda não foi esclarecido o motivo pelo qual esses pilotos desrespeitaram o plano de vôo, não atenderam aos chamados dos controladores de terra, assim como não se sabe por que não funcionou o transponder (mecanismo que identifica o avião no radar) do Legacy.
É verdade que o fato de ter sido passageiro do Legacy o jornalista Joe Sharkey, do The New York Times, que não perdeu a oportunidade de escrever matéria em seu jornal, colocando em dúvida o sistema de controle de vôos do Brasil - afora outras matérias, no mesmo jornal, supondo defeito do transponder na aeronave de fabricação brasileira -, foi um fator de acirramento de ânimo que levou a duras respostas das autoridades brasileiras, como a do presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, nestes termos: 'Ele não tem autoridade técnica nenhuma para falar sobre coisa nenhuma relacionada ao controle aéreo. Ele não tem conhecimento técnico para isso.' E completou, em compreensível defesa: 'O Brasil, de alguma forma, está no grupo 1 do mundo em termos de organização de aviação civil, tráfego aéreo e segurança de vôo, no mesmo nível que os Estados Unidos e a União Européia.' Embates 'nacionalistas' à parte, o brigadeiro deveria lembrar que terríveis acidentes aéreos - por falhas mecânicas ou humanas - também têm ocorrido naquelas partes desenvolvidas do mundo.
Mas em termos de precipitação de conclusões antes de laudos conclusivos, o advogado criminalista e ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, mal foi contratado pelos dois pilotos norte-americanos para defendê-los perante as autoridades brasileiras, já tinha em mente a plena convicção do sucedido - como se no jato executivo estivesse, na hora do acidente. Disse ele, peremptório, que os dois pilotos 'nunca desligaram' o transponder e só não seguiram o plano de vôo por uma falha na comunicação com o controle do tráfego aéreo. 'Eles estavam seguindo o plano de vôo estritamente. Ao se aproximarem de Brasília, entraram em contato com a torre, para checar se deveriam mesmo diminuir a altitude, e não conseguiram se comunicar' - afirmou o advogado, contratado pela empresa de táxi aéreo americana ExcelAire, dona do Legacy. Como não poderia deixar de ser, tal afirmação foi prontamente contestada por pilotos brasileiros e pela Aeronáutica, cujos aviões de aferição de instrumentos fizeram 12 horas de vôo na rota percorrida pelo Legacy e não detectaram falha alguma nos sistemas de comunicação e radar.
Certamente muitos choques de argumentos e críticas ainda virão à tona, de parte a parte, com acirramento. O mais importante, no entanto, por mais que comova a grande tragédia, é recuperar-se a serena racionalidade, sem descabidas disputas (do tipo Brasil vs. EUA), até para que desgraças dessa espécie não venham a se repetir, pela falta de conhecimento de suas verdadeiras causas.