Título: Depois do voto, calar o rancor
Autor: Luiz Weis
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/10/2006, Espaço Aberto, p. A2

Das campanhas eleitorais no Brasil se pode dizer o que o escritor Mário Prata disse cruelmente dos filhos em geral: são bons, mas duram muito. Esta, que acaba depois de amanhã - com o quarto debate em 18 dias, sem contar as seis entrevistas de cada candidato a diferentes órgãos de mídia e o teatro do horário de propaganda -, nem boa foi.

Falou-se muito e o que não se devia. O desafiante embarcou num discurso moralista que o fez andar em círculos e o acabou deixando onde estava antes que as palavras dossiê e aloprados engrossassem, literalmente, o léxico da estação.

O incumbente, mais do que nunca cheio de si, no papel de protetor dos pobres e flagelo das elites, usou o salto 15 para passar no adversário uma rasteira que o estatelou - a acusação de que iria passar nos cobres as jóias da coroa e fechar os cordões do Bolsa-Família.

Girando em falso, a campanha ficou aquém do que interessa: como alavancar o crescimento econômico, firmar as contas públicas, obter um salto de qualidade na educação básica, integrar os programas de transferência de renda a políticas universais de promoção social e, por fim, reaver a segurança perdida.

Sobre cada um desses temas, Lula e Alckmin (ou será Geraldo?) serviram um mexido de palavrório, platitudes e provocações mútuas que, vistos de perto, evidenciam o que ambos os lados precisavam esconder: os seus pontos em comum.

O petista, que acentuou a política econômica moderadamente ortodoxa de seu antecessor e dela colheu a popularidade do achatamento da inflação, não ousou reconhecer que o outro fez algo que prestasse, além de adotar o cartão corporativo para as despesas da Presidência...

O tucano, sem poder criticar o malanismo encampado por Lula, via Palocci, imitou-o na omissão: negou qualquer mérito aos seus quatro anos no Planalto, mesmo quando o eleitorado, por ampla maioria, considera o governo ótimo ou bom.

Se era para ser isso, antes Lula tivesse tido no primeiro turno o ponto e meio porcentual a mais que lhe permitiria liquidar a fatura já então. Não por ele, mas para economizar um mês de funcionamento das engrenagens do rancor - a herança maldita desta eleição.

O que poderia haver de debate público substantivo sobre a agenda nacional, ou mesmo de eco da civilidade do segundo turno de 2002, foi substituído por intermitentes rajadas de ofensas - corrupto! golpista! - com menos ou mais palavras.

Retrocesso é o nome do show. Alckmin, aquele que disse que falar mal dos outros não melhora ninguém, profetizou que um segundo governo Lula acabará antes de começar. No troco, o habitualmente reflexivo ministro Tarso Genro o chamou de pinochetista e evocou os seus alegados vínculos com a Opus Dei.

Isso já não cabe na rubrica do acirramento natural das disputas eleitorais. Depois da eclosão do escândalo do dossiê, ficou a céu aberto a intenção das cúpulas do PSDB e do PFL de negar legitimidade à permanência de Lula no Planalto, digam o que queiram as urnas de domingo.

O tucano Tasso Jereissati apareceu nos jornais dizendo que, 'se Lula fosse patriota, desistiria', pois, se reeleito, 'vai levar o País a uma crise moral sem precedentes'. Não passa dia sem que Fernando Henrique lance chamas sobre o sucessor, revelando uma insuspeitada queda pela piromania.

Tomada de anacrônico lacerdismo e esquecida do provérbio bíblico sobre o mal de ver o argueiro nos olhos alheios e não ver a trave nos próprios, o eixo tucano-pefelê já empatou, em matéria de ferocidade, com o tipo de oposição que o PT fazia ao governo anterior. A diferença é que lhe falta massa crítica para levar à rua a consigna 'Fora Lula'.

O acordo de cavalheiros na transição de 2002, pelo qual uma das partes concordou em deixar o passado no passado e a outra concordou em não prejudicar o futuro, virou peça de museu.

A oposição tem a seu favor um argumento poderoso: não foi ela que inventou o Waldogate, nem o mensalão, nem o misterioso material de propaganda do governo de superfaturados R$ 11 milhões, nem a tentativa de ligar o ex-ministro José Serra à máfia dos sanguessugas.

Todos esses são fatos incontestáveis e todos envolveram pessoas do círculo íntimo de Lula, no governo e no PT. Mas daí a dizer, como Tasso, que 'agora não tem mais como tirá-lo desse mar de lama' é querer criar um clima insustentável de instabilidade política. É uma temeridade: ao contrário de Collor, Lula não ficará só. E não há um Fiat Elba na praça.

No artigo A volta das vivandeiras de tribunais, publicado domingo neste jornal, o professor de Teoria Política Renato Lessa, do Iuperj, comentou que o alckmismo trata a questão política como um caso de polícia, aludindo ao que as elites diziam da questão social na República Velha.

O resultado é que há muito tempo a atmosfera política brasileira não exalava tanto enxofre - envenenando o modo como se exprimem as diferenças de opinião entre os brasileiros. Também no domingo, Sérgio Fausto, do iFHC, escreveu no Estado que basta passar os olhos pela internet para perceber a proliferação de mensagens de ódio de parte a parte. A experiência própria permite atestar que essa é a pura verdade.

Antes que o Brasil se degrade numa Venezuela empapuçada de mala sangre, onde chavistas e antichavistas competem para ver quem é mais troglodita, a distensão precisa prevalecer. 'O ideal', apontou Lessa, 'é que o contencioso seja zerado, que a política siga seu curso e que condições mínimas de cooperação sejam estabelecidas.'

Ainda bem que a mídia começa a emitir sinais de inquietação. 'Deve haver consciência em ambos os lados da disputa eleitoral de que no dia 30 continuará a existir um país para se governar', advertiu O Globo em editorial. 'Um acerto político em alto nível entre o novo governo e a oposição para o enfrentamento dessa missão é de interesse suprapartidário e não pode ser prejudicado por heranças de campanha.'