Título: A necrolatria dos peronistas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/10/2006, Notas e Informações, p. A3

Terminou em tiros e bordoadas o traslado do cadáver do ex-presidente Juan Domingo Perón do cemitério de La Chacarita - um dos mais concorridos pontos turísticos de Buenos Aires - para um mausoléu especialmente construído na chácara da família, em San Vicente. Esse desfecho não chega a surpreender. Desde que a exumação do corpo e a sua remoção para o mausoléu foram autorizadas, diversos grupos de peronistas passaram a discutir entre si pelo privilégio de participar, em primeiro plano, das cerimônias. E o que começou como um enredo de comédia de pastelão, acabou em tragédia.

A idéia de levar o corpo de Perón para um enorme mausoléu foi da Confederação das 62 Organizações Peronistas - o núcleo duro da Confederação Geral do Trabalho. Construir o mausoléu, que custou cerca de US$ 1,3 milhão, não foi problema. A complicação começou quando o cerimonial teve de decidir quem seguraria as alças do caixão. Para cada uma, havia mais de 50 candidatos, todos invocando razões de amizade, lealdade e precedência e nem um pouco dispostos a renunciar à honra de levar o chefe para a última morada. Para que já nessa etapa não houvesse cabeças quebradas e barrigas furadas, decidiu-se que o caixão seria conduzido pelos funcionários de uma funerária.

Depois disso, começou a batalha entre sindicalistas e políticos pela primazia de discursar ao pé do caixão. Durante pelo menos duas semanas, essa discussão foi o centro das atenções da política argentina. Excluídos os postulantes de menor estatura, restaram na arena o ex-presidente Eduardo Duhalde e o presidente Néstor Kirchner. Quando este, finalmente, decidiu que compareceria à cerimônia, o ex-presidente Carlos Menem protestou, afirmando que o governo Kirchner contraria o legado político do fundador do justicialismo. E Duhalde, que havia sido um dos inventores da idéia do traslado, anunciou que não ficaria ao lado de seu ex-aliado e hoje principal rival político.

No final, Kirchner também não foi e só assistiu pela televisão às cenas de bochinche protagonizadas por pesos pesados de sindicatos rivais.

A política argentina é assim mesmo, assombrada. O ensaísta Tomás Eloy Martínez, por exemplo, desenvolve a teoria de que a política local é governada pelos mortos e a necrolatria 'é coisa típica dos argentinos, como o doce de leite' e funciona tanto a favor como contra os seguidores do defunto. O túmulo de Perón foi profanado em 1987 e suas mãos - nunca mais encontradas - foram decepadas. O cadáver de Evita foi enviado para a Europa, durante a ditadura militar, para evitar o culto à 'mãe dos pobres'. Menem, quando presidente, mandou transportar o corpo do caudilho Juan Manoel de Rosas da Inglaterra para Buenos Aires, onde foi recebido em meio a grossa pancadaria. O mesmo Menem, como narra a sua biógrafa Olga Wornat, participava de sessões espíritas para entrar em contato com o caudilho Facundo Quiroga, o ex-presidente Perón e sua mulher Evita.

O próprio peronismo, como lembra o ex-chanceler Oscar Camilión, é um fenômeno somente compreensível para os iniciados em seus segredos. De fato, não é fácil entender, por exemplo, que, durante o terceiro governo de Perón, as forças que o apoiavam tivessem se dividido entre correntes que patrocinavam o terrorismo de extrema direita e as que comandavam o terrorismo de extrema esquerda - aplainando o caminho para a sangrenta ditadura militar.

O peronismo é a maior força política da Argentina. No entanto, está pulverizado a ponto de não ter, hoje, uma identidade própria. O único ponto comum entre as correntes e facções é o culto a Perón - e até essa reverência tornou-se meramente formal. Ou instrumental, para atender a conveniências de momento. É o que explica que Menem, que primeiro pretendeu ser a encarnação de Facundo Quiroga e depois preferiu ser a encarnação de Perón, tenha em certos períodos se encostado nos exemplos de Alvaro Alsogaray e do almirante Issac Rojas, símbolos por excelência do antiperonismo. E que o presidente Kirchner, quando lhe convém, evite propositadamente qualquer referência a Evita em seus programas sociais - mesmo aquelas que seriam obrigatórias.

Essa estranha obsessão - às vezes, devoção - pelos mortos é um dos traços mais negativos da política argentina.