Título: Estudo de RNA rende o segundo Nobel
Autor: Giovana Girardi
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/10/2006, Vida&, p. A24

A mesma molécula - o RNA - que faturou o Nobel de Medicina ou Fisiologia na segunda-feira foi a protagonista do prêmio de Química entregue ontem. O americano Roger Kornberg, da Universidade Stanford, foi laureado por registrar em imagens o momento em que a informação genética contida no DNA no núcleo da célula é traduzida para ser enviada para fora pelo RNA - o astro da semana.

Esse mecanismo de transcrição, através do qual o RNA carrega consigo as instruções para a produção de proteínas (e por isso ele ganha o nome de RNA mensageiro), já era conhecido pelos cientistas desde a década de 50. Mas Kornberg foi o primeiro a desenvolver um modo de visualizar em detalhes o que realmente acontece no interior da célula (veja quadro ao lado), o que lhe permitiu faturar os 10 milhões de coroas suecas do Nobel, quase US$ 1,4 milhão.

Neste trabalho foi possível observar como interagem as várias substâncias envolvidas no processo de transporte de informações. Apesar da coincidência do tema, ele nada tem a ver com a pesquisa de Andrew Fire (também de Stanford) e Craig Mello (do Instituto de Tecnologia de Massachusetts), premiada na segunda-feira. Eles identificaram uma outra capacidade do RNA - a de silenciar genes indesejados. Enquanto aquela descoberta tem uma aplicação prática potencial para o tratamento das mais diversas doenças, o estudo de Kornberg é um avanço mais significativo para as bases da biologia molecular.

Entretanto, para os membros do comitê do Nobel de Química, esse conhecimento é de tal importância que mesmo não resultando em impactos terapêuticos hoje, pode no futuro colaborar para novos tratamentos de doenças que ocorrem justamente por causa de falhas no mecanismo de transcrição, como câncer. A transcrição deve ser extremamente bem controlada para que os genes certos sejam ligados no momento e lugar igualmente certos e na quantidade correta. 'É um mecanismo-chave para o maquinário biológico. Se não funciona, morremos', afirmou Per Ahlberg, membro do comitê de Química.

Compreender bem esse processo de transcrição pode ser fundamental também para entender como as células-tronco se diferenciam nas mais diversas células do corpo. Mesmo falando com modéstia, o próprio Kornberg concordou com essa possibilidade: 'Acredito que não haja nada descoberto nos fundamentos da natureza que não possa render aplicações futuras', afirmou em entrevista coletiva por telefone.

RAIO X CELULAR

A descoberta do americano é fruto de mais de 20 anos de trabalho, mas, assim como ocorreu com Fire e Mello, o reconhecimento veio rápido. Entre a publicação de seus resultados e o Nobel se passaram pouco mais de cinco anos. Em 2001 ele publicou na revista científica Science as primeiras imagens (uma delas aparece abaixo, no quadro) obtidas num complicado processo bioquímico conhecido como cristalografia.

Trabalhando com células de levedura, primeiramente Kornberg interrompeu o processo de formação de RNA quando estava no meio do caminho. Ele então criou cristais das moléculas envolvidas e 'tirou uma foto' deste momento e dos subseqüentes usando raios X, passo por passo. A imagem obtida, com as moléculas em sua forma cristalina, foi então processada por computador, que calculou as posições reais dos átomos e gerou o quadro divulgado pela equipe do cientista.

Como em um filminho, ali aparece, a pleno vapor, a enzima RNA-polimerase, que governa todo o processo de transcrição do DNA. É ela que escaneia os nucleotídeos da molécula (as letras que formam os genes) e passa a informação para a formação do RNA. 'O DNA é claramente importante', afirmou o pesquisador, 'mas dentro dele, a informação fica silenciosa, é a RNA-polimerase que lhe dá voz'. Na imagem é possível ver gradualmente a fita de RNA surgindo.

'Até a publicação deste trabalho, conhecíamos o mecanismo por meio de evidências bioquímicas. Sabíamos quais eram os atores do processo, mas não como ele realmente acontecia. As peças estavam no plano, agora conseguimos vê-las em três dimensões', comemora Ivan de Godoy Maia, professor do Departamento de Genética do Instituto de Biociências da Unesp Botucatu.

Jeremy Berg, diretor do Instituto Nacional de Ciências Médicas, nos Estados Unidos, compartilha da opinião. 'Este é um dos mais fundamentais processos biológicos', afirma. 'Mas quando Roger Kornberg começou a trabalhar nisso, era tão complicado que algumas pessoas achavam que ou ele era ambicioso demais ou louco de tentar desvendar essa estrutura', brinca.

FILHO DE PEIXE...

Quando o cientista for até Estocolmo em dezembro receber o prêmio, terão se passado exatamente 47 anos da primeira visita dele ao local. Na ocasião ele, então com 12 anos, acompanhava Arthur Kornberg, para a mesma cerimônia da qual ele vai participar agora. Seu pai estava ali para receber o Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1959 por seus estudos sobre como a informação genética é transferida de uma célula-mãe para suas filhas. Assim como a competência na pesquisa científica parece ter passado de pai para filho.

Apesar disso, Kornberg-filho disse que o pai não influenciou sua escolha pela carreira. 'Eu estava lá, mas estava em outro mundo. Pelo que eu me lembro, me interesso por ciência desde sempre.' Essa é a sexta vez na história do Nobel que o prêmio é distribuído entre membros de uma família.