Título: 'Sou um sobrevivente', afirma Lula, mais pragmático a cada dia
Autor: Vera Rosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2006, Especial, p. H4

Aos poucos amigos íntimos que lhe restaram no governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não esconde sua aflição. Está preocupado, apesar do discurso oficial triunfalista, cantando vitória. Sob intenso cerco político, Lula tenta hoje liquidar a eleição no primeiro turno, após quase quatro anos de um mandato marcado por crises, para se fortalecer numa disputa que promete invadir 2007, ameaçando a governabilidade.

Com a cúpula do PT dizimada por escândalos e auxiliares envolvidos em ações criminosas, o presidente vestiu o figurino de 'pai dos pobres' perseguido pelas 'elites' e, num embate feroz com a oposição, aposentou o Lulinha Paz e Amor que, em 2002, empunhava a bandeira da ética na política.

Na trajetória do socialismo utópico ao pragmatismo radical, Lula desbastou o discurso ideológico do PT, sepultou velhos dogmas da esquerda, manteve a política econômica que sempre criticou e aliou-se a inimigos que antes chamava de corruptos. Mas um Roberto Jefferson no meio do caminho e muitos 'aloprados' do PT na reta final da campanha jogaram seu governo numa crise brutal, com desfecho imprevisível.

'Sou um sobrevivente', desabafou Lula, há poucos dias, em conversa com amigos. Primeiro operário que chegou à Presidência do Brasil, na esteira de quase 53 milhões de votos, o homem que passou fome na infância se referia aos percalços de sua vida: da miséria em Garanhuns, no sertão pernambucano, às sucessivas crises no Palácio do Planalto. 'O PT pagou o preço de chegar ao poder', disse. 'No governo, não tem essa história de 'eu acho que é assim', 'eu penso que é assado'. Cada gesto é concreto, para o bem ou para o mal.'

A amargura freqüenta as conversas privadas de Lula desde que, há 16 dias, petistas foram flagrados pela Polícia Federal tentando comprar um dossiê com denúncias que ligariam José Serra, candidato do PSDB ao governo paulista, à máfia dos sanguessugas. Favorito na disputa contra o tucano Geraldo Alckmin, o presidente repete como mantra que nada sabia. Mas sabe que, se for reeleito, uma penca de problemas baterá à sua porta a partir de 2007. O primeiro deles: a oposição, capitaneada pelo PSDB e pelo PFL, não lhe dará trégua.

No divã do poder, a guerra entre os vários grupos do PT também é sangrenta e todos temem o risco do segundo turno. Mais do que isso, culpam-se por previsíveis danos à governabilidade num provável novo mandato. A luta travada no mosaico petista só espera o fim da eleição para ser escancarada.

LINHA DO MEIO

Lula promete ressuscitar o pacto social proposto em 2002, que não saiu do papel. 'Não por falta de vontade minha', diz ele. 'Eu sou capaz de conversar com a extrema-esquerda e com a extrema-direita e continuar sendo a linha do meio. Até Fernando Henrique Cardoso eu vou chamar', afirma, numa referência ao ex-presidente, hoje seu principal desafeto no PSDB. Todos os interlocutores de Lula sabem da sua mágoa em relação a FHC, que, nos últimos dias de uma campanha com cheiro de enxofre, definiu o rival como 'demônio'.

Sem os seus principais escudeiros, como o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu e o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci - o primeiro abatido pela crise do mensalão e o segundo, pela violação do sigilo bancário do caseiro Nildo -, o presidente também está cada vez mais pragmático quando o assunto é alianças. Em seu palanque desfilam personagens da política antes execrados pelo PT, como o senador José Sarney (PMDB-AP), o deputado Jader Barbalho (PMDB-PA) e o ex-governador de Minas Newton Cardoso.

No último comício de Belo Horizonte, na terça-feira, Lula chamou Newtão, como é conhecido o atual candidato do PMDB ao Senado, de 'meu querido companheiro'. Não parou por aí: elogiou sua vontade de 'votar os projetos de interesse do Brasil'. No palanque, o neolulista não se fez de rogado. 'Essa aliança não é só para essa eleição, não. É permanente, para acabar com essa linha dura do PSDB e do PFL', anunciou.

SUBTERRÂNEO

Vinte e quatro horas depois, Newtão já previa que Lula terá de dobrar a cota do PMDB no latifúndio da Esplanada, de três para seis ministérios, se quiser apoio amplo, geral e irrestrito. Após assistir impassível à política do 'toma-lá-dá-cá' no Congresso, Lula jura que, se for reeleito, tudo será diferente com o 'governo de coalizão' - traduzido por seus adversários como loteamento de cargos.

Muito antes de ser apontado pela Procuradoria-Geral da República como chefe de uma 'quadrilha' instalada no coração do Planalto, Dirceu fechou acordo com o PMDB para uma parceria. Foi logo depois da eleição de 2002, mas, na última hora, Lula vetou a aliança e ficou refém dos interesses subterrâneos de pequenos partidos. Hoje, corre atrás do PMDB.

'Lula só percebeu a importância do PMDB após a minha derrota na presidência da Câmara', constatou o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), que, sem o apoio da sigla, perdeu a eleição para Severino Cavalcanti (PP-PE), em fevereiro de 2005. A derrota expôs a fragilidade da base governista, sempre movida a negócios.

É na conta do sistema político que Lula debita a culpa pela desgraça que se abateu sobre o seu governo após o escândalo do mensalão. 'O erro não é de um partido ou de uma pessoa: é da formação política. Isso é uma coisa crônica, incrustada que nem marisco', compara.

Num discurso que vai do afago à fúria com os antigos companheiros, Lula hoje oscila entre ser mais ou menos PT, conforme suas conveniências. A salvação para todos os males, no seu diagnóstico, é a reforma política. Antes da eleição de 2002, dizia a mesma coisa. Mas a receita, até hoje, não foi aviada.