Título: Em busca da democracia, um longo caminho de 474 anos
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2006, Especial, p. H11

Brasil, nação e democracia eram idéias impensáveis nos idos de 1532, quando, pela primeira vez, um grupo de pessoas deixou suas casas na vila de São Vicente e foi votar em uma eleição. O pai da idéia era Martim Afonso de Souza, nobre português recém-chegado, donatário da capitania, que os convocava para eleger o conselho municipal da insignificante vila.

Tão antigo, tão curioso e tão revelador do que viria nos 474 anos seguintes. Eram votos, mas de poucos. Havia lei, mas valia tão longe, lá em Portugal, que não se comparava ao poder local do ilustre donatário. Só daí a 22 anos os jesuítas subiriam a serra para fundar, no planalto, a vila de São Paulo de Piratininga. Só daí a três séculos e meio a Lei Saraiva criaria o voto direto para os súditos do imperador Pedro II.

Entre o batismo eleitoral de São Vicente e o domingão democrático de hoje - quando 125.913.479 brasileiros vão escolher seus preferidos entre os 19.980 candidatos registrados nas 432 mil urnas eletrônicas de 5.568 cidades - os eleitores viram de tudo. Eleições fechadas, abertas, na colônia, no reino, no império, na república. Voto de cabresto, currais eleitorais, comícios e emboscadas, cabos e coronéis, cédula única, cédula falsa, votos cassados, urnas roubadas, fraudes a mais não poder e até grandes festas cívicas. A batalha em busca da cidadania, ou melhor, a briga de gato e rato entre povo e poder, sobreviveu a ordenações reais e inconfidências, Tiradentes e silvérios, diretas-já e impeachment. Mensalões, sanguessugas e dossiês são uma continuação natural da pátria adiada.

O resultado está nos números. Em 117 anos de República os brasileiros tiveram 34 presidentes, dos quais só 16 eleitos pelo voto direto. Dois longos regimes de exceção, entre 1930 e 1945, com Getúlio Vargas, e entre 1964 e 1985, com os generais-presidentes, roubaram do eleitor nove eleições gerais em 36 anos. No império, não mais que 1% da população estava habilitada a escolher. No início da República, de 2% a 3%. E mesmo 'aqui bem pertinho', já em 1960, quando um furacão chamado Jânio Quadros bateu recordes somando 5,6 milhões de votos, a escolha não envolveu mais que 10% dos brasileiros.

Comparado com isso, este 1º de outubro é uma festa das boas. O presidente que vencer, hoje ou no fim do mês, terá quase metade dos votos - pois só contarão os válidos - de 67,2% da população. Portanto, um terço de representação real, na terceira maior (só estatisticamente) democracia do planeta.

De formalidades, portanto, estamos bem servidos, por mérito da Constituição de 1988, que liberou a formação de partidos e chamou para palpitar os analfabetos e os jovens a partir de 16 anos. E, também, por competência da Justiça Eleitoral, que fez em silêncio uma espantosa revolução eletrônica que nos oferece o mais moderno e competente sistema para eleger uma péssima classe política. Já podemos dizer, de boca cheia, que uma fraude como a da Flórida em 2001, que ajudou a eleger George W. Bush, nos encheria de vergonha.

PRIMEIROS VOTOS

A votação de São Vicente, exemplo de civilidade fora de época, nada teve de exótico. O ritual se repetiu depois, cada vez que portugueses e seus herdeiros, os bandeirantes, entrando pelo interior, achavam um bom lugar para fundar uma vila. Ali mesmo o grupo era reunido e elegia o guarda-mór regente. Só depois disso era fundada a aldeia.

E haja hierarquia. Sob o domínio da Espanha, entre 1580 e 1640, os primeiros eleitores pátrios tiveram de seguir a Constituição daquele país na hora de votar. E o que determinava ela? Que os cidadãos das províncias elegessem os 'compromissários'. Estes apontariam os 'eleitores de paróquia' - os quais, a seu turno, definiriam os 'eleitores de comarca'. Por fim, no quarto dente da engrenagem, estes últimos escolhiam os deputados que representariam a população do Brasil em Portugal. Não havia o menor perigo de um índio, escravo, mameluco ou protobrasileiro sonhador romper esse muro para pregar liberdade ou outros atrevimentos.

Mas um dia chegou a independência e, com ela, o País começou a definir a sua cara, essa que todos conhecem. Aprovou-se em 1823 uma Constituição, que foi derrubada em seguida. O imperador providenciou a sua, outorgada - e dela surgiram regras duradouras, que se manteriam praticamente até a República. Que grande progresso: o brasileiro já podia votar em vereadores e deputados nas câmaras legislativas das cidades e das províncias. O Senado também entrava em cena. Era vitalício.

A República, quem diria, engatou a marcha à ré nessa caminhada. Poderiam votar, dizia a Constituição de 1891, só os que tivessem uma renda mínima - por exemplo, o equivalente à produção de 1,5 tonelada de mandioca. Antigos escravos, já libertos, foram ignorados, assim como mulheres e analfabetos.

Na primeira eleição direta para presidente, Prudente de Morais chegou ao poder em 1894 com os votos de não mais que 2,2% da população (cerca de 276 mil). No Rio de Janeiro de então, com 500 mil habitantes, votaram 7.857 pessoas. Era do Rio que falava Lima Barreto ao descrever a imaginária república de 'Os Bruzundangas': 'Os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral esse elemento perturbador - o voto'. E a praga, infelizmente, durou - tanto que, meio século depois, o general Eurico Gaspar Dutra chegava ao Catete com apoio de menos de 7% do povo - 3 milhões de votos, num país de 45 milhões de habitantes. Se servir de consolo, o voto feminino chegou relativamente cedo, já em 1932.

ÉTICA OU MISÉRIA

A urbanização do País outrora essencialmente agrícola acelerou o ritmo, de lá para cá, e trouxe ao centro da cena uma população que adora política, adora votar e que fazia de cada eleição uma festa. Entre as antigas batalhas verbais, no rádio e nos comícios, de Getúlio, Lacerda, Jânio, Brizola e aguerra de slogans da TV de hoje, multidões cantaram refrões e marchinhas, aplaudiram e vaiaram vassouras e marajás. Neste 2006 restou-lhes assistir, desiludidas ou desinformadas, a uma mal contada disputa entre a ética e a miséria.

'À medida que a democracia se consolida e as disputas partidárias se tornam rotina, decresce o entusiasmo', avalia o cientista político Leôncio Martins Rodrigues. Para ele, o vasto cardápio de falcatruas oferecido ao público 'levou a um desânimo geral. A resposta foi afastar-se da política, quer dizer, da sujeira'.

Mais curto e direto, Francisco de Oliveira, um ex-petista hoje no PSOL, avisa: 'A política tornou-se irrelevante, o que manda é o capital financeiro.' Outro pensador da vida brasileira, José Arthur Giannotti, é mais moderado: temos corrupção, sim, mas os outros também têm. 'Fez-se um fogo cruzado em torno da ética, como ela se apóia no Estado. Mas dizer que somos todos iguais apenas equivale a dizer que a política romana, feita na base da propina, é igual à nossa.' Ele não aceita que a política seja irrelevante: 'Um erro numa medida econô mica do governo pode resultar em muita miséria.'

Olhando as décadas passadas, o historiador Marco Antonio Villa comemora e lamenta: esta é a quinta eleição presidencial consecutiva da História do Brasil - feito inédito, coisa de democracias adultas. 'Mas é também a pior eleição desde 1989. Não teve debates entre candidatos, não teve programas de governo. Lula apresentou o seu há duas semanas, Alckmin há alguns dias, e nada mais. Um absurdo.' Como comparação, ele lembra que, no mês passado, o eleitor do México foi bem melhor servido: havia três candidatos, três projetos nacionais e uma escolha metro a metro, até o último momento.

Villa identifica o desinteresse geral com o fim de um ciclo que foi iniciado com Fernando Collor, em 1989. 'O que temos é uma crise da elite política, que é ruim demais. É sintomático que Collor, arqui-rival de Lula naquela eleição, esteja de volta, pela porta do Senado, apoiando o mesmo Lula que ele demonizou'. Depois que todos votarem e os tribunais começarem a contar os votos, o Brasil poderá, diz ele, deparar-se com uma situação original: a de um presidente quase mito, talvez vitorioso em primeiro turno, que na manhã do dia seguinte poderá estar politicamente enfraquecido, tendo de lutar a sério para enfrentar cobranças e ficar no cargo.

Coisas de um país que hoje tem o 10º maior PIB do planeta, mas cuja renda per capita é apenas a 53ª. 'A desigualdade é a escravidão de hoje', define outro grande estudioso, José Murilo de Carvalho. Como reduzi-la, eis o bom programa de cada eleitor neste feriado, entre 8 e 17 horas.