Título: Oposição a Chávez se organiza
Autor: Norman Gall
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2006, Internacional, p. A8

Há tempos, as eleições presidenciais na Venezuela, programadas para o dia 3 de dezembro, eram vistas como um pleito desigual, prolongando a permanência do presidente Hugo Chávez no poder. Nas eleições parlamentares de dezembro de 2005, para minar a legitimidade do regime, muitos opositores a Chávez e sua ¿Revolução Bolivariana¿ promoveram uma abstenção maciça, de 75% de eleitores. Mas, recentemente, essa facciosa e desorganizada oposição se uniu para apoiar um candidato civil, Manuel Rosales, governador do Estado petrolífero de Zulia, a fim de apresentar um desafio mais forte ao presidente.

Chávez segue sendo o favorito para continuar na presidência. Domina instâncias críticas do poder, como o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), o Judiciário, o Legislativo e as Forças Armadas. Goza de uma bonança de renda do petróleo que reparte aos pobres nas ¿missões¿ sociais, apesar da queda de preços nas últimas semanas. Também tem militarizado seus quadros de campanha para mobilizar eleitores em todo o país. Mas o crescente apoio a Rosales, um político veterano e sagaz, indica, segundo pesquisas recentes, que Chávez agora enfrenta um desafio sério.

¿A partir deste momento, o furacão bolivariano entra em erupção; a nova maré vermelha chegou¿, disse Chávez, usando camisa vermelha tal como seus seguidores, num comício em que formalizou sua candidatura. ¿Se os candidatos retirarem suas candidaturas, atendendo a planos imperialistas, tenham a certeza de que seus amos em Washington e seus lacaios aqui vão lamentar o fato. Isto não é uma ameaça. Recomendo que não o façam, porque esse contra-ataque vai apenas aprofundar e acelerar a Revolução Bolivariana.¿ Como que para dar credibilidade ao aviso, Chávez radicalizou suas nomeações políticas nos últimos meses e deu um formato militar à sua campanha para a reeleição. Em outro comício, anunciou planos de criar ¿um partido único para representar a República ao mundo¿, juramentando 11.358 ¿batalhões¿ e 44.698 ¿pelotões¿ de seus seguidores, com o objetivo de somar dois milhões de voluntários, sob a supervisão intensa da milícia ¿Comando Francisco Miranda¿. Essas equipes estarão encarregadas de percorrer as cidades do interior do país para acompanhar o cumprimento das metas da campanha eleitoral. Tais quadros podem ser úteis a Chávez em eventuais confrontos numa eleição apertada na apuração dos votos.

Chávez afirmava que iria conquistar 10 milhões de votos, ou 63% do eleitorado, até a entrada de Rosales na disputa, o que o levou a reduzir a promessa para 6 milhões. A principal promessa da campanha de Rosales, saído das fileiras do partido tradicional Acción Democratica (AD) no Estado populoso de Zulia, é um plano chamado ¿Mi Negra¿, para distribuir mensalmente 20% da receita do petróleo a 2,5 milhões de famílias mais pobres.

Antes de um largo espectro de grupos de oposição ter se unido para apoiar Rosales, os analistas de opinião estimavam que Chávez poderia conseguir 5 milhões ou 6 milhões de votos se 30% ou 40% dos eleitores comparecessem para votar, e menos do que isso se o índice de comparecimento fosse inferior a 30%. Pesquisas três meses antes da eleição ainda apontam Chávez como ganhador, mas com menores margens de diferença.

¿Chávez ganhou com 60% dos votos em suas três últimas eleições¿, observou Eleazar Díaz Rangel, veterano jornalista da esquerda e diretor do diário Últimas Noticias. ¿Não existe motivo para isto mudar substancialmente, ainda que a oposição possa crescer. O partido mais importante, o AD, está propondo abstenção, ainda que alguns de seus dirigentes apóiem Rosales, que pode acabar desistindo. A oposição pode estar criando condições para denunciar fraude.¿

Outros 21 candidatos já ficaram conhecidos como defensores de Chávez, sendo que 15 deles foram cadastrados junto às autoridades eleitorais pouco antes do prazo final de 24 de agosto. Cada um desses candidatos chavistas tem direito a tanto tempo na rádio e na televisão quanto os dois principais candidatos oposicionistas. E cada um deles tem direito a manter dois representantes em cada mesa eleitoral, possibilitando ao governo lotar os locais de voto com seus partidários.

A oposição protesta contra o que afirma ser o inchaço fraudulento do número de eleitores cadastrados, as divergências em torno de práticas de recontagem de votos e as suspeitas de violação do voto secreto pela tomada de impressões digitais dos eleitores quando eles utilizam as urnas eletrônicas.

Metade dos municípios venezuelanos tem mais eleitores cadastrados do que habitantes em idade para votar. Em Maracaibo, cerca de 1.900 eleitores foram cadastrados com a mesma data de nascimento no mesmo distrito. Centenas de outros eleitores apresentavam o mesmo número em suas cédulas de identidade. Quando a campanha começou, a CNE confirmou que vai utilizar a tomada computadorizada das impressões digitais dos eleitores. Vicente Díaz, o único membro oposicionista da CNE, disse que o cadastramento das impressões digitais vai assustar os eleitores, levando à abstenção em massa. As urnas eletrônicas foram fornecidas por uma empresa da Flórida, a Smartmatic, dirigida por técnicos venezuelanos com conexões políticas e da qual o governo da Venezuela detém 28% das ações.

A abstenção em massa em eleições presidenciais é relativamente nova na Venezuela. No pleito de 1988, 18% dos eleitores se abstiveram, proporção que subiu para 30% no referendo de rescisão de mandato ganho por Chávez em agosto de 2004; 45% se abstiveram nas eleições estaduais de outubro de 2004, 68% na eleição municipal de agosto de 2005 e 75% na eleição parlamentar de dezembro de 2005. Alfredo Keller, pesquisador veterano em sondagens de opinião, relatou que apenas 30% dos eleitores potenciais - em sua maioria chavistas engajados - declararam que pretendem votar na eleição presidencial de dezembro de 2006, enquanto outros 30% expressaram apoio crítico e 40% decididamente rejeitam Chávez.

De acordo com Keller, surge uma contradição entre o apoio popular a Chávez e a discordância de suas políticas manifestada pelas mesmas pessoas entrevistadas - 72% delas rejeitam suas idéias de ¿socialismo para o século 21¿, incluindo os ataques à propriedade privada, enquanto 63% se opõem ao fato de ele gastar grandes quantias para ganhar apoio geopolítico no exterior.

Uma sondagem mais recente conduzida pela Datanálisis apontou queda de 5% ao mês nas intenções de voto em Chávez, que teriam caído para 55%. Dos entrevistados, 80% se manifestaram insatisfeitos com a maneira como ele lida com a criminalidade, 70% se opõem a sua campanha contra os EUA e dois terços se dizem insatisfeitos com a maneira como ele enfrenta a corrupção. Outra pesquisa aponta que 93% dos pobres entrevistados são a favor da propriedade privada.

Um mistério que cerca a política venezuelana envolve essa questão: por que um grupo de políticos e intelectuais de talento - Rómulo Betancourt, Raúl Leoni, Juan Pablo Pérez Alfonzo, Andrés Eloy Blanco, Rafael Caldera, Rómulo Gallegos, Mariano Picón Salas, Luis Beltrán Prieto e muitos outros - pôde estabelecer em meados do século 20 uma democracia que durou quatro décadas? E por que a Venezuela não produziu nenhuma liderança democrática comparável, hoje, que seja capaz de fazer oposição eficaz a uma ditadura que vem ocupando espaço cada vez maior? Os democratas de antes, em sua maioria, nasceram no atrasado interior da Venezuela e tiveram menos educação formal do que os milhões de venezuelanos que hoje têm diplomas universitários. Eles propunham um programa claro e convincente, enquanto os democratas de hoje não oferecem alternativa estratégica à ¿Revolução Bolivariana¿ capaz de superar a pobreza, a polarização e a desordem que ameaçam a sociedade organizada. Essa é a essência do vácuo político atual.

Esse vácuo político coexiste com um boom de consumo, amplamente noticiado pela imprensa internacional. Uma reportagem da TV BBC sobre a revolução de Chávez começava com cenas de jovens divertindo-se numa boate lotada de Caracas. O New York Times relatou que ¿numa manhã recente de domingo, clientes gastadores esvaziaram o Vintage, um bar da moda, de quase toda sua vodca de melhor qualidade. Ali perto, na revendedora Chevrolet Castellana, os compradores têm de esperar oito meses para receber as chaves de automóveis pelos quais pagaram há tempos. E, num fim de semana recente na Loja Digital LG e na RCA Electronics no shopping center Sambill, a confiança dos consumidores ajudou a esvaziar os estoques de TVs e geladeiras. `Mesmo os operários da construção vêm gastando seus salários inteiros assim que são pagos¿, disse Gerardo Pereira, 33, proprietário do Vintage, que afirma nunca ter visto venezuelanos de todas as classes sociais gastarem tanto¿.

O Miami Herald relatou: ¿Eles dirigem Hummers e Audis novos. Usam relógios Cartier e carregam bolsas Montblanc. E quase sempre pagam em dinheiro vivo.¿ Um funcionário da loja Montblanc num shopping center contou: ¿Eles compram tudo: relógios, bolsas, canetas, seja o que for. E pagam sempre em dinheiro vivo, especialmente os militares.¿

Wilmer Ruperti, que fechou lucrativos contratos com o governo depois de fretar navios-tanques para ajudar Chávez a superar a greve da PDVSA (a estatal venezuelana de petróleo) em 2002 e 2003, teria gastado US$ 1,6 milhão na Christie's, em Londres, para adquirir duas pistolas que pertenceram a Bolívar. Alguns dos bem-sucedidos oficiais militares que ocupam cargos-chave no governo podem ser vistos no Hipódromo de Caracas, assistindo às corridas de seus cavalos puros-sangues recém-comprados. Consumidores venezuelanos ávidos retornaram a Miami com sua frase clássica: ¿Tá barato, dame dos.¿ As mercadorias compradas por eles na Flórida aumentaram em 130% nos últimos três anos, chegando a US$ 5,5 bilhões. De acordo com o diretor da Câmara de Comércio Venezuelano-Americano na Flórida, ¿uma grande parte dos novos investimentos privados venezuelanos nos Estados Unidos vem sendo feita por chavistas¿.

Com taxas de juros controladas pelo governo, o crédito ao consumidor aumentou 128% no último ano. A economia venezuelana, que estivera estagnada nas duas décadas anteriores, mergulhou numa recessão profunda em 2002 e 2003, perdendo 17% do PIB, principalmente em função dos distúrbios políticos e da greve na PDVSA. Mas cresceu 29% em 2004-05. O crescimento acelerado continua em 2006, movido pela alta dos preços do petróleo e o enorme aumento dos gastos públicos. A grande maioria dos entrevistados numa pesquisa da Datanálisis diz que as condições de vida melhoraram. Hoje, quase todo adulto possui telefone celular. O consumo de uísque escocês, um símbolo de status, cresceu 60% em 2005. Um humorista de televisão de origem humilde, Benjamin Rausseo, conhecido como o Conde de Guácharo, ao anunciar sua candidatura à presidência, prometeu construir um ¿uisqueduto¿ entre a Escócia e a Venezuela, ironizando o gosto de Chávez por megaprojetos.

O mercado acionário de Caracas subiu 67%, alcançando um novo pico nos 12 meses encerrados em julho de 2006. A inflação atingiu seu ponto máximo em 103%, em 1996, mas caiu para 14% em 2005, segurada pelos controles sobre os preços, o câmbio e as taxas de juros. Mas o efeito dos controles de preços está se desgastando, criando a ameaça de mais inflação e a escassez de café, ovos, sardinhas, carne, farinha de milho, frango e leite, levando ao esgotamento dos estoques nos supermercados subsidiados Mercal. Esses produtos só se encontram a preços do mercado negro. Os preços de apartamentos subiram 20% nos seis primeiros meses de 2006. A demanda cresce à medida que o suprimento de dinheiro (M2) vem aumentando à taxa anual de 63% em 2006. O Banco Central se esforça desesperadamente para impedir que a liquidez aumente em ritmo ainda maior.

O Banco Central se tornou tecnicamente insolvente porque foi obrigado a contrair empréstimos pesados de bancos, a juros altos, para absorver o excesso de liquidez, ao mesmo tempo em que esgotava seu capital, atendendo a ordens de Chávez para transferir US$ 10 bilhões ao Fonden, um fundo de desenvolvimento sob o controle pessoal do presidente. O Fonden recebeu outros US$4,6 bilhões da PDVSA, que foi obrigada a sacrificar investimentos em exploração e produção. Os gastos públicos em 2006 estão subindo 124%, com o governo contraindo empréstimos grandes para cobrir um déficit previsto para chegar a 3% do PIB, apesar do aumento da receita petrolífera. O governo vem gastando além de sua capacidade. Para a primeira metade de 2006, o governo anunciou planos para gastar o dobro de sua receita. ¿Se os gastos absorvem dois terços da receita anual do setor petrolífero em um mês, o governo está cavando um buraco para sua própria falência¿, disse Franklin Rojas, diretor do Centro de Pesquisas Econômicas (Cieca). Aludindo ao boom petrolífero desperdiçado dos anos 1970, o respeitado relatório mensal LatinSource observou:

¿A história está se repetindo, à medida que as contas fiscais entram no vermelho em meio a uma bonança petrolífera inusitada. Enquanto isso, a produção petrolífera estagna, a economia se torna mais vulnerável, e a oportunidade de construir mecanismos de estabilização vai se perder mais uma vez . Parece haver apenas uma saída possível na Venezuela quando os preços petrolíferos altos e em ascensão se somam a eleições presidenciais: aumentos acentuados nos gastos do governo, forte presença do governo na economia e controles administrativos para gerir os preços relativos de acordo com a agenda política. O modelo político e econômico atual só pode sustentar-se com preços de petróleo altos e crescentes. Se o preço do petróleo se estabilizar ou começar a cair, Chávez terá que optar entre avançar com a revolução às expensas do bem-estar da nova elite e correr o risco de perder o apoio desta, ou manter o status das novas elites às expensas de uma base maior da sociedade.¿

Enquanto a resistência a Chávez se organiza, o preço de petróleo venezuelano vem caindo rapidamente, em 17% nos últimos dois meses. Outro artigo vai focalizar a queda na produção venezuelano de petróleo.