Título: Uma reforma ruim
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/10/2006, Notas e Informações, p. A3

A campanha eleitoral pôs em destaque, mais uma vez, a reforma tributária, condição essencial para um crescimento sustentado e acelerado. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva alardeia o mérito de ter mandado ao Congresso, no começo de seu mandato, um projeto de mudança do sistema de impostos e contribuições. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, promete dar prioridade à conclusão da reforma, pois a parte politicamente mais difícil continua encalhada no Congresso. Empresários cobram mais do que as alterações contidas na proposta, insuficientes para reduzir o peso da tributação e para torná-la compatível com uma economia exposta à concorrência global. Mas poucos analisaram em profundidade o texto ainda em tramitação, a PEC 285. O economista Clóvis Panzarini, ex-coordenador de administração tributária da Secretaria da Fazenda de São Paulo, é um desses poucos, e sua recomendação é radical: o próximo presidente deveria abandonar essa proposta e recomeçar o processo.

A primeira parte da reforma, aprovada em dezembro de 2003, foi tímida e pouco melhorou os impostos e contribuições. A parte politicamente mais complicada, porque envolvia os Estados, ficou para mais tarde e ainda não está resolvida. O principal tributo estadual, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), continua sujeito a 27 legislações diferentes e ainda é usado para a guerra fiscal. Por meio de incentivos, governos estaduais procuram atrair empresas e novos investimentos. Uma lei complementar proíbe há décadas a maior parte desses incentivos, mas as violações tornaram-se rotineiras e nunca foram reprimidas com o vigor necessário.

A reforma deveria unificar as legislações, diminuir o número de alíquotas e impossibilitar a guerra fiscal. Mas a proposta de emenda em tramitação atende a esses objetivos apenas parcialmente. Na prática, não eliminará a guerra. Isso ocorreria somente se a cobrança do imposto, nas operações interestaduais, ocorresse no destino da mercadoria. Como tem observado Clóvis Panzarini, em artigos e entrevistas, é inútil a nova lei declarar proibida a concessão de benefícios, porque essa prática já é proibida e os governos estaduais fazem o que querem. Ainda na semana passada, secretários de Fazenda reuniram-se para discutir o assunto, mas não conseguiram chegar a um entendimento.

Mas a cobrança no destino acarretaria novo problema. Os Estados que vendem mais do que compram perderiam receita. Seria necessário um sistema de compensação e isso envolveria complexa negociação política. Não será possível evitar esse trabalho, se o sistema de cobrança for alterado.

A proposta em tramitação é falha também porque envolve, nas transações interestaduais, a antecipação do pagamento do imposto ao Estado de destino. Cada empresa terá de operar com várias Secretarias da Fazenda - ou com todas.

Recomeçar o processo de reforma dependerá da iniciativa do governo federal. O ministro que der esse passo terá de estar disposto a uma difícil negociação com os governadores e com as bancadas estaduais no Congresso. Se estiver disposto a enfrentar um trabalho mais ambicioso, tentará corrigir um erro de origem do ICMS. Introduzido em 1967, como ICM, esse tributo reproduziu no Brasil a fórmula do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), experimentado com êxito na Europa. Mas o ICM nasceu como imposto estadual, enquanto o IVA europeu era cobrado pelos governos centrais. Isso favoreceu distorções, incluída a guerra fiscal.

Não será fácil corrigir essa falha. A alternativa aparentemente mais simples seria a criação de um IVA federal. Os Estados teriam acesso à receita por meio de transferências. Seria complicadíssimo, em termos políticos, definir o critério de repartição. Outra hipótese seria a instituição de um imposto compartilhado, já dividido entre Estados e União. Também não seria fácil a definição do mecanismo, mas a apropriação da receita pelos Estados seria talvez mais segura. Não há solução fácil, mas isso não justifica a desistência de procurar uma solução melhor que a da PEC 285.