Título: Nobel para técnica de silenciar genes
Autor: Giovana Girardi
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2006, Vida&, p. A8

A molécula de RNA deixou definitivamente o posto de garoto de recados ontem, com o anúncio do Nobel de Fisiologia ou Medicina deste ano. Foi premiado o trabalho dos cientistas americanos Andrew Z. Fire, da Escola de Medicina da Universidade Stanford, e Craig Mello, da Escola Médica da Universidade de Massachusetts, que descobriram uma capacidade do RNA de ¿silenciar¿ genes.

A técnica, conhecida como interferência do RNA (ou RNAi), é considerada hoje um dos mais promissores avanços na medicina por dois motivos. Primeiro porque é possível usá-la para ¿desligar¿ de forma precisa praticamente qualquer gene. Ao desativá-los, os pesquisadores podem descobrir para que eles servem. ¿Somente conhecer os genes não nos diz o que eles fazem. Mas, se os desligamos, podemos começar a aprender sua função¿, explica Fire.

A outra aplicação, mais prática em termos terapêuticos, é poder desativar a ação de genes de vírus, bactérias e, inclusive, de doenças genéticas. ¿É um mecanismo fundamental para o controle da expressão gênica na maioria dos organismos¿, afirmou ao Estado o presidente do comitê do Nobel de Medicina, Goran Hansson.

A promessa é tão grande que essa foi uma das mais rápidas premiações da história - apenas oito anos depois de a dupla ter publicado seu estudo na revista Nature e apesar de a descoberta ainda não ter originado nenhum tratamento.

De um modo geral, o Nobel leva mais de uma década para reconhecer uma descoberta, até que esteja bem comprovada. Barry Marshall e Robin Warren, laureados de 2005 pela descoberta da bactéria que causa úlcera, esperaram 20 anos para o reconhecimento.

¿Premiamos Fire e Mello pela descoberta de um mecanismo básico que já foi confirmado por muitos laboratórios ao redor do mundo. Está claro que a descoberta mudou nosso paradigma em biologia molecular. Entretanto, ainda é cedo para dizer qual papel isso terá no futuro da medicina¿, diz Hansson. Caso similar foi a premiação em 1962 para a descoberta da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick, nove anos após a publicação.

A dupla revelou surpresa ao ser informada. Mello ainda reconheceu que suspeitava que seu trabalho com Fire um dia pudesse render o Nobel, mas não tão logo. ¿Eu tenho apenas 45 anos. Por isso, imaginava que levaria pelo menos 10 ou 20 anos para acontecer¿, afirmou, logo após receber a notícia.

Fire, de 47 anos, chegou a achar que não tinha acordado direito. Não eram nem 4 horas na Califórnia, onde vive, quando recebeu a ligação. Os nomes dos vencedores foram anunciados em Estocolmo, na Suécia. ¿Eu podia estar sonhando ou podiam ter ligado para o número errado. Ambos eram mais prováveis¿, brincou, numa entrevista coletiva por telefone. ¿Minhas primeiras palavras foram: `Vocês só podem estar brincando¿. Mas aqueles senhores claramente não estavam.¿

DOGMA DA GENÉTICA

Até a descoberta de Fire e Mello se imaginava que o fluxo de informação na célula se dava por uma via só: os genes do DNA são transcritos pelo RNA mensageiro (RNAm), que leva a informação até os ribossomos,onde as proteínas, as verdadeiras responsáveis pelo funcionamento do corpo, são sintetizadas (veja quadro acima).

A sacada da dupla americana, ao estudar esse processo no verme C. elegans, foi perceber que no meio do caminho essa informação pode ser interceptada e anulada. Eles descobriram que moléculas de RNA de fita dupla (normalmente ele tem uma fita só) podem destruir o RNAm. Desse modo, ela consegue impedir que a informação do gene seja decodificada sem a necessidade de alteração do próprio DNA. O gene continua funcionando, mas suas mensagens deixam de ser recebidas.

A interferência de RNA ocorre naturalmente em plantas e animais e parece ter surgido milhões de anos atrás para regular a expressão dos genes e atuar no sistema de defesa, principalmente de organismos mais simples, contra vírus que às vezes criam RNA com fita dupla quando se replicam.

Mas é a manipulação em células humanas que promete avanços terapêuticos. ¿Tinha certeza de que no máximo até 2010 esses caras receberiam o prêmio¿, comemora Tiago Campos Pereira, do Laboratório de Genética Médica da Unicamp, um dos primeiros a estudar as possibilidades do RNAi no Brasil. ¿É como se estivéssemos fabricando uma nova geração de antibióticos¿, explica.

POTENCIAL DE CÉLULA-TRONCO

Para ele, o potencial terapêutico da interferência do RNA pode ser comparado ao das células-tronco. ¿Em uma perspectiva bem resumida, hoje em dia temos duas ferramentas que em teoria podem curar qualquer doença. O RNAi vai reduzir tudo o que está em excesso (vírus, bactérias etc.), enquanto as células-tronco podem suprir o que está em falta.¿

Apesar da empolgação, os pesquisadores ouvidos pelo Estado ainda recomendam cautela. ¿Precisamos tomar cuidado para não desativar sem querer um outro gene¿, explica Luciana Vasques, que pesquisa o RNAi no Instituto do Coração. Alguns genes podem ter pequenas seqüências de letras iguais ao do gene alvo da terapia, daí o risco. ¿Não é mágica, nem solução para tudo.¿