Título: Uma carta ultrapassada
Autor: Sanford Levinson
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2006, Internacional, p. A26

A Constituição dos Estados Unidos pode ser o texto mais reverenciado do país. É o documento da fundação americana, que o presidente George W. Bush jura preservar e proteger e os juízes dos EUA continuam a interpretar e reinterpretar talmudicamente mais de 200 anos depois de ter sido redigido. É o símbolo da democracia americana, que freqüentemente se considera a maior do mundo. No entanto, na realidade, a Constituição está tão longe de ser perfeita que ameaça a capacidade de resolver problemas terríveis enfrentados pela sociedade do país. Criou uma ordem política que sofre de um ¿déficit democrático¿, um termo que é muitas vezes aplicado à União Européia, mas, infelizmente, é ainda mais preciso em relação à sociedade americana.

Isto não é um mero fracasso teórico. No momento, por exemplo, mais da metade do país desaprova fortemente o Congresso e o presidente. Quase três quartos das pessoas entrevistadas em pesquisas acreditam que os Estados Unidos estão rumando na direção errada. Essas não são reações de um eleitorado que está satisfeito com o status quo. Pode-se argumentar que isto é transitório, uma questão de antipatia momentânea para com os atuais ocupantes dos cargos - e uma virada nas eleições legislativas do dia 7 traria uma alegria renovada aos descontentes. Mas isso seria um engano. A realidade sombria é que a própria Constituição dos EUA garante que os resultados da votação serão bem menos significativos do que se poderia esperar.

Comecemos com a constatação de que, aconteça o que acontecer, Bush continuará a ocupar a Casa Branca até 20 de janeiro de 2009, apesar de 60% dos americanos desaprovarem sua atuação. A maioria dos sistemas políticos do mundo dispõe de mecanismos pelos quais líderes que perdem a confiança da população podem ser removidos do cargo. Um modelo disso é a Grã-Bretanha, onde os conservadores despacharam sem cerimônia Margaret Thatcher quando ela deixou de ser considerada adequada para liderá-los, e onde o Partido Trabalhista está em processo de fazer o mesmo com Tony Blair.

Mas, de acordo com a Carta americana, embora os criminosos possam ser removidos, os meramente incompetentes são protegidos. Não seria preciso adotar o parlamentarismo para construir um sistema no qual o Congresso possa declarar ¿falta de confiança¿ no presidente e forçar sua substituição. Por enquanto, Bush mantém seus poderes, inclusive o poder de vetar leis. Este é outro elemento extraordinariamente antidemocrático do sistema americano, que permite que um homem suprima os desejos de grandes maiorias e, de fato, se transforme numa terceira Casa, independente, de um processo legislativo já incômodo. Este aspecto de ¿terceira Casa¿ do processo legislativo é uma explicação para a dificuldade - freqüentemente, a impossibilidade - de aprovar uma legislação inovadora e transformá-la em lei.

Os californianos têm um motivo particularmente esmagador para desrespeitar a Constituição: embora tenha 35 milhões de habitantes, o Estado tem o mesmo voto que o Wyoming (de 500 mil habitantes) no Senado dos EUA.

Como é possível defender um sistema no qual Barbara Boxer voltou ao Senado em 2004 com cerca de 6,5 milhões de votos ao mesmo tempo em que Lisa Murkowski, do Alasca, conquistava exatamente o mesmo cargo e poder com cerca de 150 mil votos? Não é possível imaginar um desvio maior em relação ao que gostamos de acreditar que seja o conceito de ¿uma pessoa, um voto¿.

Mais uma vez, não se trata meramente de um problema teórico. Pesquisas têm demonstrado que o controle de 25% dos votos do Senado por Estados com apenas 5% da população nacional tem levado a um notável fluxo de dólares do governo de Estados altamente populosos, como a Califórnia e Nova York, para Estados com população escassa, mas politicamente beneficiados.

Na realidade, a Califórnia tem ainda menos poder no Senado do que os Estados pequenos, dada a forma como o poder efetivo é distribuído. Os democratas, por exemplo, extraem sua liderança quase exclusivamente dos Estados menores.

No decorrer dos últimos 30 anos, os líderes do partido têm vindo de Montana (Mike Mansfield), Virgínia Ocidental (Robert Byrd), Maine (George Mitchell), Dakota do Sul (Tom Daschle) e Nevada (Harry Reid). Nesse mesmo período, os líderes republicanos vieram do Tennessee (Howard Baker e Bill Frist), Kansas (Bob Dole) e Mississippi (Trent Lott).

Nem a Califórnia se beneficia tanto quanto se poderia acreditar do fato de ter o maior número de votos no colégio eleitoral que escolhe o presidente da república.

Os motivos são simples. Primeiro, Estados pequenos, que têm ao menos três votos garantidos, têm um poder de votação desproporcional no colégio. Segundo, a estrutura do colégio eleitoral gerou um sistema pelo qual os candidatos a presidente se concentram somente nos ¿Estados campo de batalha¿, ou seja, Estados nos quais o eleitorado é muito dividido e a diferença entre os candidatos é muito apertada.

Faz muitos anos que a Califórnia não tem sido campo de batalha. Portanto, nenhum candidato que queira fazer uma coalizão vencedora no colégio eleitoral vai prestar muita atenção na Califórnia.

Um dos candidatos (o democrata) considera sempre a Califórnia como vitória certa, enquanto o outro freqüentemente desdenha o Estado. Se os Estados Unidos fossem uma democracia moderna, na qual o presidente fosse eleito pela maioria popular, os californianos seriam cortejados, em vez de deixados de lado enquanto os candidatos paparicam metalúrgicos em Ohio ou cubano-americanos em Miami, Estes são apenas alguns dos problemas da Constituição. Há, também, o fato de que, desde a 2ª Guerra Mundial, o colégio eleitoral pôs cinco homens na Casa Branca - Harry Truman, John Kennedy, Richard Nixon, Bill Clinton e George W. Bush - que não conquistaram a maioria da votação popular.

Os americanos também não estão bem servidos com o extenso período de mais de dois meses entre o dia da eleição e o dia da posse, durante o qual os presidentes não reeleitos - pense em Jimmy Carter e George H. W. Bush - mantêm a plena autoridade para tomar decisões polêmicas. Ou pelo fato de que os juízes da Suprema Corte muitas vezes servem por períodos ridiculamente logos - a norma tem sido 25 anos - e a nomeação de mais jovens, como Clarence Thomas, de 42 anos, e o presidente da Suprema Corte, John G. Roberts Jr., de 50 anos, torna provável que eles atuem por 30 ou 40 anos. E mais: eles podem marcar a data da sua renúncia para garantir que seus sucessores sejam escolhidos por presidentes que compartilhem de sua ideologia política.

Acreditar que a Carta americana é perfeita - ou mesmo verdadeiramente adequada para o mundo de hoje - é o equivalente a acreditar que é seguro dirigir um carro com os freios defeituosos e pneus perigosamente gastos. Mesmo que conseguíssemos fazer viagens seguras no passado nessas condições, somos criminosamente negligentes em acreditar que podemos continuar a fazê-las agora.

Infelizmente a Constituição dos EUA não é como a de Nova York, que contém uma cláusula que pergunta aos nova-iorquinos a cada 20 anos se eles querem fazer uma convenção para repensar e reformular o documento. (Em vez disso, é extremamente difícil fazer emendas na Constituição americana, pois meras 13 câmaras legislativas em Estados diferentes podem obstruir uma emenda apoiada pela maioria esmagadora dos americanos.)

No entanto, isso não livra os americanos do dever de refletir sobre a adequação da Constituição e de tomar medidas para diminuir os riscos inaceitáveis que ela apresenta para o ¿governo do povo, pelo povo e para o povo¿.