Título: Do poder do povo ao poder de Putin
Autor: Dominique Moisi
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2006, Internacional, p. A27

Enquanto assistia a uma cerimônia em Paris em memória da jornalista russa Anna Politkovskaya - assassinada dia 7 -, lembrei-me de outra homenagem póstuma da qual participei há quase 17 anos em Moscou. Ao contrário de Politkovskaya, o grande cientista e ativista dos direitos humanos Andrei Sakharov não fora assassinado, e o tributo a ele pareceu a celebração de uma nova era. Uma nova página estava sendo virada, cheia de incerteza, mas também de esperança de que a Rússia estivesse a caminho de ser um ¿país normal¿.

É esta página que provavelmente foi fechada por completo com o assassinato de Politkovskaya. O luto dos intelectuais reunidos em Paris era pela esperança de uma Rússia diferente. Sepultávamos o sonho coletivo de intelectuais e democratas de uma Rússia onde a liberdade e o império da lei, depois de um longo e frio inverno soviético, criariam raízes e floresceriam. O sonho acabara. Mais provavelmente, ele nunca fora possível.

Hoje a Rússia está literalmente comprando seu retorno ao sistema internacional como ator dominante, que recupera poder e influência substituindo as armas nucleares pelo petróleo e pelo gás e a ganância pelo medo. O equilíbrio do terror da era soviética deu lugar à dependência energética unilateral em favor da Rússia.

A despeito das enormes diferenças que podem separá-los, a Rússia pós-comunista e o Irã fundamentalista têm muito em comum. A riqueza energética lhes confere um senso de oportunidade única, a convicção de que o tempo está a seu favor e eles agora podem reparar as humilhações que sofreram nas mãos do mundo exterior. É como se eles combinassem a cultura da humilhação do mundo árabe/islâmico e a cultura da esperança da Ásia. Ambos são marcados por um nacionalismo hostil e sentem-se fortes, ainda mais porque acreditam que os EUA estão em declínio como resultado do pesadelo no Iraque, e talvez também no Afeganistão.

As diferenças entre Rússia e Irã, é claro, são enormes. O regime iraniano é altamente ideológico e animado por uma paixão aberta pela destruição de Israel. Não tem o apoio em massa de sua sociedade, a não ser quando se trata do orgulho nacional e da busca pelo status nuclear.

O regime da Rússia, em contraste, é animado pelo dinheiro, não pela ideologia. Em sua campanha para reconstruir o poder e a influência do país, o presidente Vladimir Putin tem o apoio da imensa maioria da população. Seu lema é ¿Enriqueça e fique quieto¿, temperado com forte toque de orgulho imperial. Enquanto o dinheiro do petróleo continuar fluindo, a maioria dos russos não expressará nostalgia pela abertura democrática da era Yeltsin, acompanhada por uma combinação de caos, corrupção, fraqueza internacional e desrespeito pelo Estado. Será que os russos são tão diferentes de nós, no mundo democrático ocidental, ou a democracia é um luxo exclusivo de sociedades antigas, estáveis, prósperas e satisfeitas? Na busca pela estabilidade pós-soviética, os russos parecem ter encontrado segurança em Putin. Ele mostrou ser um político talentoso, capaz de entender e então controlar o humor do povo russo.

Para a maioria dos cidadãos russos, a prosperidade econômica e o entretenimento televisivo tornaram-se o equivalente da fórmula de pão e circo dos tempos romanos. A guerra na Chechênia pode contribuir para a corrupção moral da Rússia como um todo, até o mergulho assustador numa cultura da violência. Mas também alimenta uma emoção patriótica - um anseio popular pela restauração do status e do prestígio imperiais da Rússia - que o regime de Putin explora com astúcia.

Enquanto isso, os russos comuns ganham pouco. A multiplicação dos assassinatos de oponentes políticos e rivais econômicos e a prática mafiosa de execuções encomendadas não podem ser vistas como sinais de uma estabilidade recuperada. O mesmo vale para a manipulação, pelo regime de Putin, da xenofobia popular contra cidadãos do antigo império soviético, como os georgianos. A Rússia pode ter recuperado o status de potência forte - mas é respeitada, feliz? A Rússia é rica, mas os russos, pelo menos a maioria, continuam pobres. Um dia, terão de reconhecer que nações modernas não podem viver só de poder.