Título: O conflito e a presidência
Autor: José de Souza Martins
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2006, Aliás, p. J3

No primeiro debate entre os dois candidatos a presidente da República, neste segundo turno das eleições, o presidente Luiz Inácio atirou na face de seu opositor que Alckmin é candidato de um partido que esteve 500 anos no poder e, não obstante, não fez pelo País o que deveria ter feito. E que ele Lula, há menos de 4 anos no governo, fez mais pelo Brasil do que o partido do lado de lá. Lula não é um tolo. Mas, às vezes, esperteza demais, como nesse caso, expõe desconhecimento e mentalidade demagógica. Lula sabe para quem está falando e não é para o opositor.

Para Lula e o PT há um abismo imaginário que divide o país em dois Brasis antagônicos, o bom Brasil dos Lulas e petistas e o mau Brasil dos Geraldos e demais. Bom de política e ruim de história, Luiz Inácio recebeu uma resposta sofrível do candidato do PSDB, também ruim em história, até a das realizações de seu partido no poder, antes de Lula. Dentre outros temas, não se lembrou das políticas de auxílio compensatório aos pobres no governo Fernando Henrique. Políticas que, no fracasso do barulhento Fome Zero, foram parasitadas, maquiadas e rebatizadas pelo governo do PT. Asseguram-lhe os votos da roça.

Lula não sabe, mas de sua boca, nessa afirmação, saíram palavras pré-formatadas que sintetizam o modo de pensar de facções políticas e religiosas que construíram uma ponte de palha sobre o abismo que separa materialistas e religiosos. A de uma nova ideologia do conflito social como fundamento de governo, dividir o país ao meio, punir um lado e bajular o outro, não privatizar, mas privar para distribuir.

Nos dias que se seguiram ao debate, a bobagem de um Brasil dividido entre os que mandam e os que são mandados há 500 anos firmou-se como mote de campanha do PT. Mas o silêncio sobre essa premissa tomou conta da campanha do seu adversário. Os dois candidatos deveriam ser reprovados em história do povo. Um porque a conhece pelo avesso e outro porque simplesmente a ignora. Alguém dirá que campanha eleitoral não é curso de história, o que é verdade. Mas justamente a força desse falso argumento histórico na campanha de Lula mostra o quanto uma certa memória da injustiça social no Brasil está presente na consciência do povo. Lula sabe disso, a seu modo. Geraldo não o sabe. Memória simplista e folclórica, nem por isso deixa de conter o essencial da verdade histórica, embora no factual não se confirme, sendo antes grosseira deturpação.

O que se inventou foi uma religiosidade política fundada no pressuposto de que governar é agir em nome do conflito. Essa é a grande mudança política que está em andamento. O governo não é mais o agente da crônica conciliação tão característica da história política do Brasil e, no fundo, tão conservadora. Agora o governo orquestra o conflito. Nesta mesma semana, um dos líderes do MST declarou que aquela organização política estará, digamos, em férias até o dia 29 de outubro, dia da eleição, para não atrapalhar a campanha eleitoral de Lula. Às 17 horas daquele dia, declarou, quando as urnas forem fechadas, seus militantes sairão das trincheiras. Os atores do teatro do oprimido sabem dosar a encenação, mesmo que seja ela uma forma de mentir politicamente para reter o poder ou a ele chegar.

O candidato do PSDB e os partidos de oposição não entenderam as mudanças profundas e ruins já ocorridas na política brasileira. Batem na tecla do irrelevante. Quanto mais insiste o candidato no politicamente minguado tema da origem do dinheiro que seria usado para comprar o tal dossiê, mais cresce a opção pelo candidato do PT. Não só porque muitos acham que dossiê é um tipo de doce, mas sobretudo porque, desgradaçamente, a população brasileira tem um código próprio para lidar com corrupção e ilegalidade. Para começar, injustamente considera todos os políticos corruptos. Então, para que perder tempo com isso? Não é do natural deles agir desse modo? Tanto pensa assim que reconduziu ao parlamento, com significativas votações, figuras, antigas e novas, que todos imaginávamos destinadas, no mínimo, ao ostracismo político permanente.

Essa é uma população que vive mergulhada num cotidiano de corrupção endêmica, todos em graus variáveis cúmplices de algum tipo de delito. É impossível viver sem burlar as regras e passar a frente do outro, até em fila de velório. Para muitos é injusto não sonegar taxas e impostos. Para outros muitos, levar vantagem em tudo, não importa a que preço, é um direito e até uma obrigação. O mais pobre dos pobres conhece essas manhas e, podendo, não deixa de recorrer a elas. Até esmoleiro de rua e de porta de igreja sabe que se não fizer com apuro o teatro da miséria e da doença não vai conseguir um níquel de ninguém. O povo sabe que a questão da roubalheira partidária e das ilegalidades que se transformaram no espetáculo que marcou a política brasileira no período recente é questão de polícia e nisso tem razão Lula. Ele não é delegado de polícia. A polícia que faça sua parte. Claro que Geraldo tem razão, também: por que essa gente ainda não foi processada e colocada na cadeia? O que é mesmo morosidade na apuração de delitos de quem tem dinheiro e poder? Não é o caso de pedir justiça de pobre para eles? É mais rápida e mais dura.

A banalização da questão política e da eleição presidencial pelos partidos tem um candidato que já governa e ainda não disse por que é que, então, já não fez o que promete e sobretudo o que prometeu na outra campanha presidencial. E tem um candidato de oposição, como os outros candidatos de oposição derrotados no primeiro turno, que não se esforça para ser substantivamente diferente de Lula e menos ainda se esforça para dizer e propor um Brasil novo, justo, igualitário, democrático, limpo, desenvolvido, com um futuro claro e bom, em que as injustiças históricas sejam corrigidas de vez e os erros do atual governo sejam apontados com firmeza e removidos com mais firmeza ainda. Esse é o conflito que deve governar o Brasil.