Título: O universo das ONGs
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2006, Notas e Informações, p. A3

Por iniciativa de um senador da oposição, Heráclito Fortes (PFL-PI), o Senado poderá criar ainda este ano uma CPI para investigar o repasse de recursos públicos a Organizações Não-Governamentais (ONGs), por parte do governo federal. O senador afirma que já dispõe das assinaturas necessárias e que irá protocolar o pedido na próxima semana. O que o levou a fazer essa proposta, diz Fortes, foram as irregularidades recentemente detectadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) nas transferências voluntárias de recursos do Orçamento para entidades sem fins lucrativos e ONGs. Numa amostra de 28 convênios firmados entre 1999 e 2005, no valor total de R$ 150 milhões, o órgão detectou graves problemas em 15.

Segundo os auditores do TCU, as 15 ONGs não tinham qualificação técnica, condições administrativas e operacionais, pessoal qualificado e experiência para receber os recursos. Além disso, os projetos analisados foram mal elaborados, com propósitos vagos, metas insuficientemente descritas, dados incompletos e prestações de contas confusas. Mais grave ainda, algumas das ONGs foram criadas apenas três meses antes da celebração dos contratos com o governo.

¿As propostas não trazem informações que permitam avaliar os objetivos que se pretende atingir, como são realizadas as ações e o que se obterá concretamente em termos de produtos ou serviços prestados à comunidade¿, afirma o relator do processo, ministro Marcos Costa. Os 15 convênios com irregularidades receberam o total de R$ 82 milhões.

É muito dinheiro público gasto pela União com entidades duvidosas, iniciativas discutíveis e pouca transparência na prestação de contas. Segundo a Associação Contas Abertas, uma entidade sem fins lucrativos que se mantém com contribuições da iniciativa privada, o total de recursos repassados a ONGs pelo governo federal, entre 2001 e setembro de 2006, chegou a R$ 11 bilhões, em valores correntes. Para o próximo ano, o projeto de Orçamento que o Executivo encaminhou ao Congresso prevê um repasse de R$ 2 bilhões. E a esse valor poderão se acrescer as emendas de deputados e senadores.

Evidentemente, ao propor uma CPI para investigar os convênios firmados pela União com ONGs a partir de 2003 e acusar o governo de ter favorecido entidades vinculadas ao PT, o senador oposicionista Heráclito Fortes quer apenas fustigar o presidente Lula. Isso faz parte do jogo democrático. No entanto, independentemente do embate entre situação e oposição, a CPI pode representar uma oportunidade ímpar para se avaliar a atuação das ONGs no País, especialmente aquelas que, em flagrante contradição com o próprio nome, vivem exclusivamente de repasse de recursos governamentais.

A expansão do número de convênios firmados pela União com essas entidades começou na década de 90, com a reforma do Estado e as subseqüentes pressões para a redução das despesas de custeio. Acompanhando uma tendência mundial, o governo federal diminuiu a oferta de serviços essenciais por ele diretamente prestados, delegando-os a entidades da sociedade civil e apoiando-as financeiramente. A idéia era fortalecer o voluntariado e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), entregando-lhes a responsabilidade por determinadas atividades que fortalecessem iniciativas comunitárias.

O problema é que, por falta de uma legislação eficaz, a estratégia foi desvirtuada e o governo perdeu o controle das transferências voluntárias de recursos públicos ou passou a privilegiar entidades criadas por sua clientela política. Em 2002, a estimativa era de que existiam 22 mil ONGs no País, atuando nas mais diversas áreas, da saúde indígena e construção de cisternas no Nordeste a reforma agrária, atendimento a crianças de rua e biodiversidade. Embora não existam dados precisos, estima-se que existam hoje 260 mil ONGs, a maioria vivendo de repasses governamentais.

A situação chegou a tal descalabro que, a pedidos das ONGs mais antigas e respeitadas, em 2004 o presidente Lula criou um grupo de estudo para analisar uma nova regulamentação para o setor. Mas, como se tornou habitual no seu governo, nada de concreto foi feito até hoje. É por isso que, como afirmam muitos especialistas em contas públicas, as transferências voluntárias de recursos públicos se tornaram um buraco negro nas finanças da União.