Título: Afegã luta contra imposição do véu
Autor: Ruth Costas
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2006, Internacional, p. A12

A primeira reação da professora afegã Shukria Barakzai ao receber a notícia da queda do regime Taleban, em 2001, foi tirar a burca, manto que cobre as mulheres dos pés à cabeça, e sair às ruas de Cabul para comemorar. ¿Um menino me cumprimentou em inglês, porque achou que eu fosse estrangeira¿, conta. ¿Ele era muito novo para se lembrar da última vez que havia visto o rosto de uma mulher afegã na rua¿.

Sua segunda ousadia foi lançar, meses mais tarde, a revista feminina Aina-e-Zan (Espelho da Mulher), única publicação voltada para esse público no país. Nos últimos cinco anos, não parou mais: ajudou a elaborar a Constituição afegã, elegeu-se deputada em 2005 (¿Sem usar o dinheiro do meu marido na campanha, é bom que se diga¿) e, hoje, tenta impedir que projetos de leis como o que recria o Departamento para a Preservação das Boas Maneiras e Prevenção dos Maus Hábitos - um dos símbolos do regime Taleban, que vigiava o cumprimento das tradições islâmicas - voltem a colocar em risco as liberdades femininas, sua maior bandeira.

¿A opressão e a violência contra a mulher estão enraizadas nas tradições familiares e em muitos anos de história afegã¿, disse a deputada, de 34 anos, em entrevista ao Estado. ¿Não há milagre. Já fizemos muitos avanços na conquista de alguns direitos, mas não é em cinco anos e com um punhado de leis que se resolve isso.¿

Por ¿isso¿ entenda-se, por exemplo, o fato de muitos pais afegãos ainda proibirem suas filhas de estudar, apesar desse direito ser garantido por lei, ou de algumas mulheres serem obrigadas a cobrir o rosto com o véu islâmico por imposição de suas famílias e comunidades.

PESO DO VÉU

¿Uma das maiores evidências de que as mulheres de um país não são livres é a discussão - no governo, na sociedade ou em suas famílias - sobre o que ela deve ou não vestir¿, afirma Shukria, que, depois de abandonar a burca (¿para mim, um símbolo de opressão¿), passou a usar um véu leve (¿símbolo de respeito religioso¿) sobre os cabelos. ¿Ninguém fica debatendo se os homens devem cobrir a cabeça ou usar camisa de manga comprida¿, diz.

Embora as últimas eleições tenham colocado mulheres em 68 das 351 cadeiras do Parlamento afegão - parcela semelhante à do Canadá -, Shukria conta que alguns de seus colegas confessam não apoiar seus projetos pelo fato de ela ser mulher. ¿São necessárias gerações para acabar com esse tipo de atitude¿, diz a deputada, mãe de três meninas.

Outro indício desse tradicionalismo arraigado na sociedade afegã é o modo como a proposta para recriar o departamento de nome extenso e muitas normas foi recebido, apenas cinco anos depois da queda do Taleban. Cerca de 70% dos 300 afegãos entrevistados pela Fundação Konrad Adenauer em Cabul apoiaram o projeto, apresentado meses atrás pelo presidente Hamid Karzai, sob pressão de clérigos muçulmanos.

¿Isso não quer dizer que a população seja a favor da volta da polícia religiosa do Afeganistão, mas que - diante da escalada de violência e do caos que tomou conta do país - muitas pessoas querem ter seus valores resguardados de alguma forma¿, diz a deputada. ¿É claro que sempre existe o risco de radicalização¿.

Quando os taleban estavam no poder, as mulheres não podiam trabalhar ou estudar. Eram obrigadas a usar a burca, sob risco de apanhar com chibatadas se deixassem à mostra alguns centímetros de tornozelo. ¿A polícia religiosa não perdoava¿, lembra Shukria.

Foi uma surra dos taleban, num dia em que teve de sair desacompanhada para ir ao médico, que a convenceu a abrir uma escola clandestina para meninas.

OPRESSÃO

Nascida em uma família abastada, Shukria recebeu educação. Não só faz parte dos 17% da população feminina alfabetizada, mas, na década de 90, chegou a cursar geologia na universidade. Sua idéia, na época, era que a informação seria a arma que ajudaria as afegãs e os afegãos a derrubar o regime fundamentalista sunita.

Até hoje, a informação é sua principal aliada. A revista Aina-e-Zan é publicada em pashtun e dari, dois idiomas oficiais do Afeganistão. Tem uma tiragem pequena, de 3 mil exemplares - nada mal para os padrões afegãos. Trata de temas como política, educação, saúde e o papel da mulher na sociedade, além de defender uma versão moderada do Islã.

¿Da mesma forma que uma interpretação enviesada do cristianismo levou a Igreja Católica a matar milhares de mulheres há cinco séculos, é uma interpretação radical e extremista do Islã que motiva a opressão das mulheres, não o Islã por si¿, afirma a deputada.

Quando a revista foi lançada, era a única publicação a empregar mulheres. Hoje elas dividem com repórteres homens a cobertura dos eventos do país.

Outra preocupação de Shukria é o aumento recente da violência no Afeganistão. O país foi apresentado cedo demais pelos EUA como um modelo de sucesso na guerra contra o terror. Os 32 mil soldados da Otan no país não estão conseguindo conter a ação das milícias e grupos insurgentes. Este ano, eles lançaram mais de 600 ataques por mês, uma média quatro vezes maior que a do ano passado. ¿A falta de segurança é um limite para a liberdade¿, diz.

Desde janeiro, grupos insurgentes queimaram ou fecharam mais de 200 escolas. O fortalecimento dos taleban é visível, principalmente no sul do país. ¿A maioria da população não apóia essa milícia¿, garante Shukria. ¿O que está fazendo com que ganhem força é o patrocínio de grupos árabes de outros países do Oriente Médio, que querem transformar o Afeganistão em mais um imenso campo de batalha contra os EUA e o Ocidente¿, completa.

Com a situação se deteriorando, Shukria tem sido alvo de atentados com freqüência. O pior deles, no entanto, ocorreu há três anos, quando participava da Constituinte. Uma bomba explodiu em sua casa, mas ela estava fora.

Mesmo assim, Shukria dispensa o uso de guarda-costas. ¿Isso é algo bastante comum entre os parlamentares afegãos, mas eu não briguei tanto pela liberdade para, mais uma vez, ser obrigada a abrir mão de minha autonomia e andar apenas na companhia de homens¿.