Título: Sem fiscalização, estatais e fundos distribuem dinheiro a municípios
Autor: Irany Tereza
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2006, Nacional, p. A4

Método de financiamento de projetos sociais é pouco transparente e pode ter uso eleitoral, alertam especialistas

O governo estabeleceu um canal direto com os municípios para o repasse de recursos destinados a projetos sociais, com base em verbas de empresas estatais e fundos públicos. A liberação do dinheiro segue critérios do Executivo, sem o controle do Congresso. A avaliação de especialistas é de que esse procedimento é pouco transparente e pode criar brechas para barganhas partidárias e eleitorais.

O programa Luz Para Todos, uma das vitrines da campanha à reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em pequenas localidades, aprovou, a partir do início de 2005, o repasse de R$ 4,5 bilhões, dos quais R$ 2,3 bilhões já foram liberados. Só R$ 908 milhões passaram pelo crivo do Congresso. Mais da metade das verbas (R$ 2,385 bilhões) ficou concentrada em municípios de cinco Estados: Bahia, Minas, Maranhão, Pará e Mato Grosso.

O Congresso também não examina verbas liberadas diretamente por estatais para programas sociais, listadas fora da rubrica ¿investimentos¿. É assim que a Petrobrás contempla prefeituras com doações por meio do Fundo para a Infância e a Adolescência, sem a necessidade de aval legislativo.

De 2003 a 2005, a estatal doou R$ 96,2 milhões. A direção da empresa determina as cidades para as quais o benefício é repassado e quanto cabe a cada uma. A Bahia foi o terceiro maior destino no ano passado, com R$ 3,556 milhões, segundo levantamento do Estado.

Vinte e um municípios baianos foram contemplados. Sete prefeituras petistas e outras sete do PFL baiano, liderado pelo senador Antonio Carlos Magalhães, concentraram a maior parte dos recursos. ¿O problema de empresa estatal é que ela sempre tende a virar uma máquina eleitoral. Nesse caso, é meio óbvio que o objetivo na Bahia era o de minar o ACM. É o ônus de se ter estatal. A questão central do Brasil hoje é tornar o Estado mais transparente e mais eficaz¿, diz o professor da Fundação Getúlio Vargas Marcos Fernandes, autor do livro Ética e Economia: Impactos na Política, no Direito e nas Organizações. O economista frisa que fala com a autoridade de quem é contra a privatização da Petrobrás: ¿Como fui contra a da Vale (do Rio Doce).¿

CRITÉRIOS Em nota enviada ao Estado por e-mail - a entrevista solicitada ao diretor responsável não foi atendida -, a Petrobrás alega ter instituído, a partir de 2003, ¿critérios corporativos para o repasse das verbas¿. Segundo a estatal, esses critérios foram desenvolvidos em conjunto com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, o Unicef e a Rede Andi. ¿Em lugar de, como antes, destinar os recursos para que os conselhos decidissem a sua destinação, os recursos hoje são direcionados para os projetos selecionados¿, diz a nota.

Para o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, ¿os recursos de qualquer atividade pública têm de ser submetidos ao crivo do Congresso, que é o meio mais transparente de administrá-los¿. Ele argumenta que, mesmo atuando como empresas privadas em suas atividades comerciais, as estatais necessitam de um controle mais rigoroso, a priori. ¿A análise do Tribunal de Contas da União (TCU) é feita a posteriori, quando os recursos já foram utilizados¿, lembra.

O Luz Para Todos é mantido com dinheiro dos contribuintes, tarifados nas contas de luz. Essas contribuições engordam a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). O Ministério das Minas e Energia confirma que ¿os recursos da CDE não têm a ver com o orçamento aprovado pelo Congresso¿. No ministério também não foi atendido o pedido de entrevista, feito ao longo de duas semanas, com o diretor do projeto, José Ribamar Lobato Santana.

Recorrer a fundos criados para determinados programas é um mecanismo típico para evitar o controle do percurso do dinheiro. ¿Este é um princípio semelhante ao de antigos benefícios ao Norte e Nordeste, instituídos por meio da Sudam e da Sudene, que acabaram sendo esvaziados e perderam o sentido. O volume financeiro pode ser relativamente pequeno em relação ao total do orçamento, mas o problema é não haver transparência no uso do gasto público¿, diz outro economista da FGV, Fernando Resende, especialista em orçamento.

RECEITAS Isoladamente, os recursos liberados pela Petrobrás por meio do Fundo para a Infância e a Adolescência são modestos, comparados à bilionária receita da estatal. No ano passado, a média das doações foi de R$ 110 mil por município. Para pequenas prefeituras, porém, isso pode significar dois terços da arrecadação anual com Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU), a maior fonte municipal de recursos próprios.

Além disso, esta é também apenas uma das rubricas de gastos da estatal, atrelada a uma dedução no pagamento de impostos federais que, ingressando nos cofres do Tesouro, teriam controle mais rigoroso. Nelson Chalfun, professor de Economia do Setor Público na UFRJ, diz que, para um cientista político, podem parecer normais as decisões tomadas conforme a conveniência política. Mas é possível instituir um maior controle social no acompanhamento dos gasto. ¿A oferta de recursos é uma forma de cabrestar votos. As pessoas votam em quem as ajuda, literalmente. É necessário dar um tratamento mais racional à questão dos gastos públicos e a maneira mais simples é a eletrônica, instituindo mecanismos fáceis de acesso ao percurso do dinheiro, por meio de programas no computador, não da forma complexa como o Siafi (Sistema de Administração Financeira).¿