Título: Onda vermelha nas Américas
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

A derrota fragorosa do presidente George W. Bush e do Partido Republicano coincide com a onda vermelha que decora a maioria dos palácios dos novos governantes sul-americanos. O jornal The New York Times, que combateu Bush, informa que a principal causa da derrota não foi a guerra em curso no Iraque, mas a corrupção de vários congressistas republicanos. O presidente da Câmara, comprovadamente corrupto, perdeu o cargo. Outro presidia uma comissão de combate à exploração sexual de menores - e enviava fotos obscenas para crianças e adolescentes.

A repulsa da sociedade americana, que tem no Partido Republicano a trincheira do conservadorismo, da luta contra o aborto e do casamento dos homossexuais, foi, segundo o jornal, mais influente no resultado eleitoral do que a guerra interminável no Iraque, o desastre estratégico de Donald Rumsfeld, o civil correspondente, no Brasil, ao ministro da Defesa. Ele, que passava por um grande estrategista e no início do governo Bush era tido como um moderno Clausewitz, antes das desastrosas eleições já era contestado por oficiais-generais competentes e experientes que atuavam no campo de batalha. Insistiam na mudança estratégica, sugerindo adotar a Doutrina Powell, de reforçar a Ordem de Batalha com o engajamento de poderosas forças terrestres, e não continuar pensando que venceriam a insurgência com a supremacia aérea e a ilusão de fazer guerra confiando na imensa vantagem da tecnologia ultramoderna. O Iraque, que lembrou o Vietnã, foi, sim, decisivo fator para a derrota fragorosa que transformou Bush num 'pato manco', como os americanos chamam um presidente que perdeu toda a força de fazer-se obedecido.

Bush recebeu a solidariedade mundial quando o terrorismo destruiu as duas torres de Nova York e o Ocidente derramava lágrimas. Algumas, porém, foram de crocodilo. Declarou os Estados Unidos em guerra, bem-sucedida no Afeganistão, mas à preventiva contra o Iraque lhe faltou o apoio da França e da maioria do Conselho de Segurança da ONU. Foi o início do malogro da estratégia de Rumsfeld. Saddam Hussein premiava financeiramente as famílias dos homens-bomba, desafiando os Estados Unidos, e se recusava, havia anos, a permitir a inspeção dos peritos da ONU em energia atômica para fins bélicos. A intelligentsia militar americana levou o presidente a convencer-se da ameaça nuclear de Saddam, tida como certa pela CIA e pelo Pentágono, também. Partiu para a guerra preventiva, venceu o modelo convencional, mas não contou, outra vez mal informado, com a insurgência reforçada pelo terrorismo, que, sagaz, jogou na intimidação, para destruir paulatinamente a coalização das forças de ocupação. Qual a mãe e o pai que querem ver seus filhos mortos? Prevaleceu o instinto de conservação, o mais poderoso dos instintos.

Em pouco tempo, os milhares de mortos no atentado às torres eram esquecidos. Os atentados cresciam nas vésperas de eleições nas quais a oposição prometia, se vencesse, retirar as tropas do Iraque. Na Espanha, 72 horas antes da eleição, as pesquisas davam como garantida a vitória dos governistas por larga margem, embora o candidato socialista prometesse retirar as tropas do Iraque se vencesse. Um atentado cruel, em Madri, foi fatal para José María Aznar, aliado de Bush. Os militares espanhóis regressaram à Espanha. O mesmo se deu com a Itália. Os efetivos da coalizão se reduziam. Na Inglaterra, novo atentado terrorista quase fez Tony Blair perder as eleições.

Finalmente, os americanos, cansados da guerra, fizeram pesar, sobre os ombros de Bush, mais de 2 mil militares mortos na guerrilha insurgente. Bush virou o 'pato manco', que significa um governante sem força até sua substituição. Sua condenação pela guerra ao Iraque se generalizou no mundo. No nosso subcontinente foi influente em eleições. Voltamos aos anos 50 do 'século breve' da denominação de Hobsbawm, e dos 'marxismo imaginários' de Raymond Aron.

O caudilho Hugo Chávez é o anti-Bush. Evo Morales - como disse Alan García, do Peru - é candidato a presidir 'um fundamentalismo cocaleiro'. Daniel Ortega, ex-comandante da guerrilha sandinista, apoiado pelo caudilho Chávez, venceu as eleições na Nicarágua contra o concorrente próximo dos Estados Unidos. O argentino Néstor Kirchner já se beneficiou com os bilhões devidos à compra de papéis desvalorizados depois do calote da dívida externa, vem da esquerda dos montoneros e finge acreditar no gasoduto da Venezuela à Patagônia.

Chávez, porém, andou perdendo apostas eleitorais. No Peru, na Colômbia, no Equador, no México e no Conselho de Segurança da ONU. No Chile, o socialismo não se compara com o primarismo dele, de suas supostas leituras do velho Karl, que foi mais contido nos adjetivos pejorativos do capitalismo que ornam a linguagem do coronel, naturalmente saudoso dos generais ditadores seus predecessores: Gómez, por 27 anos, Contreras e Angarita, durante dez anos, e Jiménez, cujos sete anos Chávez já igualou, mas vai ultrapassá-lo na eleição próxima.

Com Lula, que no passado recente o criticou 'porque brigava ao mesmo tempo com todos, Igreja, patrões, televisão e jornais', devia estar decepcionado. Mas a viagem dele a Caracas, mal vista pelo candidato oposicionista, é clara solidariedade a Chávez, que conta ainda com um aliado contra o 'pato manco' - ou, mais que isso, um fanal - na pessoa de Fidel Castro, ao que parece, moribundo e ainda não cansado de mandar para os cárceres os que ousam a ele se opor por palavras, e matar, como fez há meses com os quatro infelizes que, a exemplo de 2 milhões de exilados, se apoderaram de um barco, visando a trocar 'o paraíso dos trabalhadores' pelo emprego na Flórida.

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado