Título: A discussão ganha espaço
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/11/2006, Notas e Informações, p. A3

O grande ausente do noticiário do fim da semana sobre a parte que diz respeito ao País do novo Relatório do Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, foi o Estado brasileiro - que, entra ano, sai ano, entra governo, sai governo, continua a ser o maior problema nacional. A imprensa se preocupou em destacar a perda de uma posição do Brasil no ranking da ONU, quando é absolutamente secundário o fato de ocupar o 68º ou 69º lugar na relação que ordena 177 países a partir dos dados econômicos e sociais usados para calcular, em cada caso, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O essencial do estudo é o retrato do imobilismo brasileiro, naquilo que depende visceralmente do poder público - educação, saúde e infra-estrutura, sobretudo.

E o Estado de há muito não dá conta do recado porque de há muito é maior do que a economia. Para repetir o lugar-comum, a área estatal sangra a sociedade com impostos escandinavos e lhe devolve serviços africanos. A parte do leão da carga tributária é apropriada pelo próprio Estado para nutrir o seu corpanzil. Não será fácil identificar outro país, na mesma faixa de desenvolvimento, onde seja tão gritante a diferença entre o que o Estado arrecada e o que devolve, na forma de serviços, a uma população da qual 2/3 dependem diretamente de políticas públicas. Ou esse quadro perverso muda ou o País ficará patinando assim até o fim dos tempos.

O pior é que a reestruturação profunda do setor estatal - para deixar de ser estorvo ao crescimento duradouro e compatível com o dinamismo da sociedade brasileira, e para proporcionar à maioria pobre as condições de prosperar a que tem direito - depende dos mesmos que são os primeiros a se beneficiar do Estado agigantado e glutão: os políticos, as corporações da burocracia e os interesses parasitários que a eles se agregam. Se assim é, a alternativa é o gradualismo. Trata-se de redesenhar por etapas o perfil do gasto público para que possa servir a algo mais além de distribuir óbolos sociais e tapar buracos que logo se reabrirão nas estradas nacionais. E essa é a agenda que forceja para encontrar espaço nos rumos do segundo governo Lula.

O presidente insiste em que está farto de ouvir falar em cortes e ansioso por ouvir falar em crescimento - como se este pudesse vicejar sem aqueles. Ele diz também, nesse caso com razão, que a margem para cortes é pequena. Mas existe e pode ser aproveitada, desde que se despolitize o problema, como se a racionalização das despesas do governo fosse uma bandeira exclusiva da oposição, algo a resistir, portanto. Embora Lula diga que 'o dinheiro vai aparecer' sem que se mexa nas despesas correntes do Executivo - as quais na sua gestão subiram de 16% para mais de 18% do PIB -, há indícios de que, no próprio PT, esse não é um pensamento único. Na última sexta-feira, por exemplo, o senador Aloizio Mercadante subiu à tribuna do Senado para fazer afirmações decididamente heterodoxas.

Criticou 'o velho desenvolvimentismo' e 'um certo romantismo econômico' dos que acreditam que se pode crescer aceleradamente e sem inflação, baixando os juros e até aumentando o gasto corrente. Para o senador, que já vinha defendendo mudanças na Previdência, trata-se de 'aumentar a taxa de investimento, cortando gastos de custeio, contendo essa expansão das despesas correntes'. Não parece ser uma voz isolada. Ainda ontem, em entrevista à Folha de S.Paulo, o ex-ministro Luiz Gushiken reclamou do debate centrado só nos juros, em vez de se 'apontar os instrumentos para destravar o ambiente econômico'.

Engatinhando no PT, a legitimação do debate sobre a crise das finanças federais encontra respaldo em um possível futuro ministro, o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel. Falando à colunista Claudia Safatle, do Valor, ele considerou a questão fiscal 'um nó poderoso que precisa ser desatado'. Assim como Mercadante, defendeu um diálogo com a oposição e os principais especialistas na matéria, sem distinções políticas. E fez uma provocação. 'O País está maduro para essa discussão e o presidente Lula talvez seja o personagem da política brasileira mais autorizado a fazer isso.' A seu ver, Lula é o único em condições de dizer que quer racionalizar o gasto público 'para poder dar mais justamente aos que têm menos'. Será outro o recado do último IDH?