Título: Golpe contra a democracia
Autor: REUTERS, AP, AFP E EFE
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2006, Internacional, p. A14

Para entender o peculiar conceito "democrático" de Andrés Manuel López Obrador, vem a calhar uma anedota da Alemanha Oriental durante a dominação soviética. Nas magras prateleiras de suas cidades, havia duas classes de manteiga: uma era, propriamente, manteiga; a outra tinha a marca "manteiga verdadeira". Os compradores sabiam que o produto com a palavra "manteiga" continha realmente manteiga, ao passo que a chamada "verdadeira" continha uma manteiga falsa.

Uma falsificação parecida ocorre no México atualmente, mas muitos compradores não se deram conta. Um caudilho carismático com aspirações messiânicas, mentalidade totalitária e métodos fascistas conseguiu convencer um setor minoritário, decrescente, mas ainda significativo da opinião pública (4 milhões de pessoas, 10% do eleitorado, talvez), que a democracia não é democracia: que a democracia é a "verdadeira democracia", como ele a decreta.

O fato é que a democracia mexicana está vivendo sua terceira oportunidade histórica. A primeira experiência de viver na legalidade constitucional (1867-1876) culminou com um golpe de Estado militar. No segundo episódio (1911-1913), o México procurou viver respeitando a Constituição e as leis, realizando eleições livres com divisão de poderes e plena autonomia do Poder Judiciário. Tudo terminou em outro golpe militar. Desde o ano 2000 vivemos nossa terceira oportunidade, que pode muito bem ser a última, porque o perigo de que a história se repita é muito real: nossa democracia pode se afogar em um golpe chefiado não por um general, mas por um messias tropical.

Os golpistas de 1876 e 1913 não procuraram disfarçar seu golpe com uma fraseologia democrática. López Obrador, contudo, tenta por todos os meios chegar ao poder utilizando a retórica da democracia para acabar com ela. Ele tem um conceito marxista das leis e do direito: ele os vê como instrumentos dos "ricos e poderosos" para oprimir o povo. Acredita que a democracia é o contato plebiscitário, direto e sem mediações, do líder com a massa. Diz que a democracia não é questão de votos, mas de mobilizações. E, em pleno frenesi, fez seus simpatizantes acreditarem que a "verdadeira democracia" está em perigo e é preciso defendê-la com o que chama de "resistência civil pacífica" - o que, em termos orwellianos, significa o contrário: um embrião insurrecional. Sua "verdadeira democracia" tem outro nome: revolução. "O México precisa de uma revolução", declarou ele ao jornal Financial Times, e não estava brincando.

Não é difícil imaginar o cenário dos próximos dias. Se, como é provável, a decisão definitiva do Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário da Federação confirmar o triunfo de seu rival Felipe Calderón, López Obrador procederá como já preveniu: em 16 de setembro, Dia da Independência do México, ele reunirá centenas de milhares de pessoas na praça central da capital mexicana e estas, por aclamação, o designarão "presidente". Sua intenção ao estabelecer esse "governo paralelo" é tornar ingovernável o regime político para assaltar o poder e permanecer nele indefinidamente, como fez Hugo Chávez.

Há quase 86 anos, o México fechou o ciclo de uma revolução que custou 1 milhão de mortos. Desde então - e é um longo tempo -, viveu em paz.

Um país assolado por problemas de injustiça, pobreza e corrupção, mas que fez avanços notáveis em sua transformação econômica, seus programas sociais e sua vida política. Seria uma desgraça que tudo isso desaguasse na violência. O México não é uma democracia a mais no mapa mundial: é o vizinho e sócio de Canadá e Estados Unidos e o fiel da balança para que a América Latina trilhe o caminho de Brasil e Chile e não o de Cuba e Venezuela. O apoio e a compreensão da opinião pública internacional à democracia sem adjetivos que conquistamos são agora mais necessários do que nunca.