Título: Cão e comportamento de cão
Autor: celso.ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/11/2006, Economia & Negócios, p. B2

Sobre os juros, no Brasil, só há uma unanimidade: a de que são os mais altos do mundo e que precisam cair. O resto é divergência.

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, vem passando boa parte de seu tempo tentando convencer (ou rebater) seus críticos de que 'juros não se baixam na raça'.

O problema é que essas pessoas adoram ter cachorro, mas não assumem as conseqüências do que é manter um bicho desses em casa. Cães precisam de treinamento, banho, trato, exercícios... E têm as pulgas a combater. Além disso, às vezes se comportam de um jeito que os civilizados consideram inconveniente. Tanto assim que, na Grécia do século 4º (a.C.) eram chamados de cínicos (aqueles que se comportam como cães) os filósofos que desprezavam bons modos e o básico em etiqueta. Enfim, quem quer cão precisa querer tudo de cão.

A maioria dos críticos da política econômica quer derrubar os juros ou porque entende que tolhem o crescimento econômico ou porque impedem a desvalorização cambial que os exportadores vêm reclamando. Boa parte dos argumentos não faz sentido ou pressupõe uma reviravolta nas regras do jogo, com que esses críticos não contam.

Há aqueles que afirmam que a atual diretoria do Banco Central é obcecadamente conservadora e que fixa os juros em níveis altos demais. Como prova de que estão certos, apontam para a inflação deste ano, que deverá fechar em torno dos 3%, cerca de 1,5 ponto porcentual abaixo da meta. Se a meta permite inflação mais alta do que a que acontecerá, por que não admitir juros mais baixos?

Esta não chega a ser uma argumentação fora de propósito. De fato, o Banco Central poderia ter derrubado os juros mais do que os atuais 6 pontos porcentuais ao ano de queda acumulada desde setembro de 2005. A inconsistência nesse raciocínio é a de que, se o Banco Central tivesse sido, digamos, menos conservador, dentro das atuais regras do jogo, talvez pudesse ter cortado pouco mais do que 2 pontinhos porcentuais. Mas isso não refrescaria a situação atual nem contribuiria para puxar pelo crescimento.

Outro grupo de críticos aposta em que uma derrubada dos juros até níveis de 8% ou 9% ao ano não provocaria a inflação alardeada pelos neuróticos do Banco Central. Não foi o que aconteceu em 2004. Naquele ano, os juros ainda estavam a 16% ao ano (9%, uma vez descontada a inflação) e, no entanto, a inflação voltou forte. Tanto foi assim que o Banco Central não teve outra saída senão reapertar a política monetária que vinha flexibilizando.

Um terceiro grupo de críticos prefere dizer que alguma inflação voltaria, sim, mas que, além de não matar ninguém, permitiria mais crescimento.

Contra essa maneira de pensar, há duas respostas. A primeira é a de que não há crescimento consistente com inflação em alta. Num momento inicial, o ressurgimento da alta de preços traria um surto qualquer que, no entanto, logo tenderia a murchar.

A segunda é a de que a política de metas de inflação é o que é. Ou se aceita o sistema com suas conseqüências, como cachorro dentro de casa, ou providencie-se sua revogação e, nesse caso, alguma outra âncora teria de ser colocada em seu lugar.

O PT e os companheiros da diretoria da Fiesp, por exemplo, vão por essa picada. Pedem uma reviravolta nas funções do Banco Central e na concepção do sistema de metas. Querem que use o fole dos juros não só para controlar os preços, mas também para estimular o crescimento.

Isso seria como pretender que o mesmo pedal do acelerador fosse usado tanto para brecar como para aumentar a velocidade do veículo. Nem o Schumacher conseguiria proeza assim. Com o acelerador, pode-se dar maior ou menor velocidade ao veículo, mas não brecá-lo.

É verdade que o governo poderia fixar uma meta de inflação mais alta, para que os juros pudessem ser mais baixos. Falta dizer por que essa meta mais alta garantiria crescimento maior.

Faltou dizer também algo sobre aqueles que defendem a derrubada da inflação para garantir a desvalorização do real. O equívoco básico dessa gente é o de que o dólar está onde está porque os juros são altos demais. Como já foi tantas vezes comentado nesta coluna, trata-se de erro de diagnóstico. O principal responsável pela desvalorização do real não são os juros altos, mas o enorme saldo comercial (exportações muito superiores às importações). Este é um fator que veio para ficar mais tempo, como apontam as projeções para o ano que vem. Enquanto for assim, não serão juros mais baixos que devolverão o dólar a seu lugar.