Título: Delírio acusatório
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

O escândalo que tomou o nome de sanguessugas, exemplo sem igual, indignou de tal modo que o presidente da República, ninguém mais ético do que ele, logo pensou no remédio salvador: convocar uma Constituinte. Para quê? A julgar pelo que informa a mídia, para votar a reforma política. Já terá havido em alguma democracia a necessidade de convocar uma Constituinte para aprovar uma só emenda constitucional?

Mesmo na Venezuela, a Constituinte foi para dar poderes ilimitados ao soldado voluntarioso que, em passado recente, queria extirpar da nação o poder civil, que estaria corrompido pela corrupção. Certamente, ele não se inspirou no herói da libertação das colônias hispano-americanas, que foi Simón Bolívar, mas nos ditadores tradicionais venezuelanos desde o século 19, até o general Gómez e o major Jiménez no século 20. E nós que acreditamos em Rafael Caldera, mestre do Direito e adversário de qualquer ditador! E na doutrina Betancourt, que, depois de dois presidentes que puderam chegar ao fim de seus mandatos, se arvorou em juiz da democracia, recusando que a Venezuela reconhecesse qualquer governo que não tivesse chegado ao poder senão pelo voto livre de seu povo. O presidente Hugo Chávez, ardoroso moralista do passado de golpista, joga com o preço altíssimo do petróleo para sonhar com a liderança da América do Sul. Até a Argentina, do valente montonero que hoje a preside, aceitou ser grato pela compra de títulos de um governo que caloteou em 75% a dívida com os endinheirados de quem se serviu, vistos agora como míseros Shylocks do capitalismo usurário. O que estranha é a idéia do presidente de convocar uma Constituinte que lhe teria sido sugerida, em breve reunião palaciana, por advogados ou juristas.

O pobre mortal que não é familiarizado com a ciência do Direito chegou a pensar que a idéia seria fruto da indignação do nosso ético presidente com o procedimento imoral dos parlamentares que se servem do orçamento da União para apresentar emendas pessoais e conseguir que prefeitos, de quem quer votos, comprem ambulâncias a preços superfaturados. Imaginou a Polícia Federal, que descobriu a manobra, que chegassem a 50 os parlamentares que se prestam a isso. Diz-se, agora, por conta de provas materiais, e não apenas testemunhais, que ultrapassam cem.

Impossível, dir-se-á. As vezes que o honrado presidente, enojado, disse ter havido 300 "picaretas", em seu tempo de deputado, a empolgar os pares com seus discursos que fariam inveja a Robespierre, estão desatualizadas. Ao que parece, estamos vivendo um período de delírio acusatório, pois cada nome que aparece na lista dos denunciados logo se defende. Nega (vivemos uma bela fase de êxito nas negações) ter qualquer fato que desabone sua conduta intocável.

E o governador do Piauí, que não conheço senão de fotos que lhe recomendam a aparência, logo nega tudo e garante processar os acusadores, justamente os empresários que enriqueciam com as vendas superfaturadas das ambulâncias previamente negociadas com os parlamentares. Já agora eles depõem estendendo os comparsas aos que governam seus Estados, uma vez que outro governador aparece no testemunho.

E senadores - quem diria! -, os pais da Pátria, a quem os honestos lhes tiram o chapéu como prova de respeito! Muitos não têm chapéus, é verdade, porém têm dignidade e são crédulos. É difícil crer no que dizem os favorecidos com a nova lei da delação premiada, que parece copiar a mais antiga experiência dos americanos do norte. Pior ficam as aparências desse libelo acusatório quando se lê que os governadores são do PT. Não é possível! Logo do PT? O petista, ex-ministro, que pretende governar Pernambuco se saiu com um argumento decisivo, que se lê nos jornais: "A conduta criticada com tanta ênfase agora já vem de longe, dos antecessores do governo petista." Logo...

Quando se vê o ex-presidente da UNE, dos tempos que combatia com ardor patriótico os governantes tucanos, ter o nome envolvido indiretamente na lista dos sanguessugas, não se pode crer. Trata-se de calúnia, decerto. Ou começou muito cedo a depravar-se o jovem ídolo, especialmente das coleguinhas de cara pintada do tempo Collor.

Ao se ler, igualmente, que da lista difamadora consta o nome de um certo cabo Júlio, da gloriosa Polícia Militar de Minas, custa a crer. Notabilizou-se liderando uma greve de praças, cujo saldo foi a morte de um colega que pedia calma à malta e uma entrevista com um governador acuado e débil. A presença de um cabo no Parlamento devia ser um exemplo de mobilidade social vertical, e não de um oportunista, aproveitador da revolta da tropa. Outra fruta do delírio acusatório?

E os pastores? Que diria deles Lutero, e sua acusação da simonia que degradou padres de seu tempo? E a suspeita de uma descendente de um político de quem tive o privilégio de ser amigo e que foi presidente do Senado, pode-se imaginar que as lições paternas possam ter sido em vão?

Essa mistura que lembra uma salada real, independentemente da ideologia dos denunciados, põe em evidência o discutível "fim das ideologias" de Daniel Bell, ao lado da indiscutível permanência da miséria humana que se instalou no Legislativo.

A ladroagem disseminada entre políticos de Rondônia envolve os três Poderes da lição de Montesquieu. Presos o presidente do Tribunal de Justiça e o da Assembléia Legislativa, algemados, já houve precedentes também no Poder Executivo local. Assim se constrói um modelo de separação dos Poderes, cada um, porém, mais ladravaz que o outro. Sugere que tenham lido e deformado a definição de política de Aristóteles: "A atividade política é a ação do Estado pela qual cada um, segundo sua condição, pode viver em bem-estar." Entenderam que se trata do bem-estar pessoal dos eventuais presidentes dos Poderes, harmônicos entre si na ladroagem...

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado