Título: A química que os liga
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/08/2006, Notas e Informações, p. A3

N ada como um dia depois do outro. No sábado, discursando para uma platéia de 83 prefeitos de diversos partidos, em Campinas, o presidente Lula voltou a condenar o Congresso por não fazer a reforma política e a defender a eleição de uma Constituinte para fazê-la, alheio às críticas que a idéia "genial", segundo ele, tem recebido de todos os lados. "Se depender do Congresso", atacou, "teremos um arremedo e não uma reforma política." E pôs-se a teorizar sobre a crise política, que disse ser a mesma "que levou Getúlio à morte" e "não é de um deputado ou de um partido". Por fim, bradou: "A estrutura está apodrecida. E temos que mudá-la!"

A esperteza de Lula é brevilínea, porém. Deixa transparentes seus três intentos. O primeiro é o de se eximir e ao PT de qualquer responsabilidade pelo desfalecimento ético que marcou o seu governo e entrou para a história com o nome de mensalão. A culpa, afinal, é da velha estrutura apodrecida. O segundo objetivo é ser identificado pelo eleitorado farto dos políticos como alguém que não só não é um deles, mas ainda compartilha plenamente do desencanto geral com os congressistas - ainda mais quando cerca de 1/5 dos deputados está sob suspeita no escândalo dos sanguessugas. O terceiro intuito é o de assumir a paternidade e a liderança do que seria um movimento da sociedade para varrer a podridão do Legislativo, mediante uma reforma profunda, de cujo preparo os legisladores seriam alijados.

O teatro de Lula durou pouco mais de 24 horas. O autodeclarado comandante supremo da guerra à podridão, do sábado, mostrou no domingo a sua face inadulterada pela retórica, ao confraternizar num comício em Governador Valadares com um personagem tido como rigorosamente representativo da estrutura que precisaria ser posta abaixo para o advento do milênio ético na política nacional - o ex-governador mineiro e candidato a senador pelo PMDB lulista, em aliança com o PT, Newton Cardoso, o Newtão. Ele teve contra si três pedidos de impeachment, ações por enriquecimento ilícito, grilagem de terras e fraudes em um projeto habitacional. Quando prefeito de Contagem, foi denunciado por peculato.

Para jogar areia nos olhos do público, os organizadores do comício inventaram o duplo palanque. Num deles, ficariam Lula e os poucos e bons, no outro, políticos cuja proximidade com Lula não convém à sua candidatura - além do Newtão, o mensaleiro petista (salvo pela Pizzaria Plenário) João Magno. Como o palanque principal ficou às moscas, o remédio foi permitir a migração dos excluídos para o palco iluminado do presidente campeão da ética. Sem problemas: ele enrolou uma história sobre palanques cheios que desabam, pediu desculpas aos barrados no seu tablado e disparou uma frase antológica: "Nós estamos ligados por uma química." Fica a critério de cada um imaginar qual a química que liga Lula e Newtão.

Se fosse para levar a sério o palavrório do presidente-candidato, o mínimo de que dele se poderia dizer é que se trata de uma grosseira simplificação. A "estrutura" não está apodrecida, mas abalada, com a inestimável ajuda da lambança que o PT promoveu para turbinar o governo do companheiro. Além disso, se é verdade que a vida dos corruptos pode ficar mais fácil ou mais difícil conforme as regras do jogo político-eleitoral, também é verdade que a corrupção pode prosperar sob o mais bem-intencionado dos sistemas, se a cultura política do país e o modo como ela é assimilada pelos praticantes do ofício favorecerem a maracutaia. No Brasil, "não existe crise moral das instituições, existe crise moral das pessoas", resume, com razão, o jurista Célio Borja, em entrevista ao Estado de domingo

Uma prova de que as instituições funcionam, quando se quer que funcionem, fazendo cumprir as leis, foi dada em Rondônia, na véspera da jeremiada de Lula sobre as estruturas apodrecidas. Autorizada pela ministra Eliana Calmon, do STJ, a Polícia Federal prendeu os presidentes do Tribunal de Justiça do Estado e da Assembléia Legislativa, um ex-procurador-geral de Justiça, um juiz, o vice-presidente do Tribunal de Contas e o companheiro de chapa do governador Ivo Cassol, candidato à reeleição, além de 18 outros suspeitos de desviar pelo menos R$ 70 milhões do erário estadual. Nem tudo é química com a podridão.