Título: Kirchner amarga derrota eleitoral
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2006, Internacional, p. A6

Aliado do presidente perde votação na província de Misiones, na primeira vez que oposição se uniu para derrotá-lo

Misiones, uma pequena província argentina encravada entre o Brasil e o Paraguai, com pouco mais de 650 mil eleitores, foi o cenário no qual o presidente Néstor Kirchner colocou em jogo ontem uma parte de seu prestígio e perdeu a aposta. Seu homem nessa província, o governador Carlos Rovira, a quem o presidente respaldou ostensivamente com milionários subsídios e anúncios de suculentos investimentos federais, foi derrotado nas urnas pelo septuagenário bispo emérito de Puerto Iguzaú, Joaquín Piña - um austero catalão que liderou uma colcha de retalhos de partidos opositores que reuniu desde latifundiários conservadores a comunistas.

Foi a primeira vez que a oposição se uniu desde a posse de Kirchner, em maio de 2003. E também foi a primeira vez que Kirchner teve um revés eleitoral desde que chegou à Casa Rosada.

Os misioneros foram às urnas para eleger os constituintes que reformarão um único ponto da Carta provincial - o de permitir (ou não) a possibilidade de reeleição eterna do posto de governador. Com mais de 95% das urnas apuradas, o bispo Piña e seu Frente Unido pela Dignidade (FUD), que se opõem categoricamente à reeleição ilimitada, somavam 56% dos votos. O governador Rovira e seu Frente Renovador (constituído majoritariamente pelo Partido Justicialista, de Kirchner), que sonhavam em reeleger-se de forma infinita, contavam com 44%.

A máquina clientelista do governo distribuiu dinheiro, alimentos e até vacas entre os eleitores, mas não foi suficiente para impedir a vitória de Piña. De acordo com a oposição, o governo desembolsou US$ 7 milhões em presentes. Além disso, Kirchner anunciou US$ 630 milhões em subsídios especiais para a província.

A derrota de Rovira indica que é possível atingir a ¿armadura¿ política de Kirchner. Foi o primeiro solavanco na ambição de Kirchner de disputar sua reeleição no ano que vem e criaria a primeira fissura em seu poder hegemônico. Segundo Rosendo Fraga, um dos principais cientistas políticos do país, a vitória da oposição representa uma derrota para o governo federal. No entanto, adverte que Kirchner poderá sair ileso. ¿Ele já mostrou que sabe se afastar de seus aliados quando estes fracassam¿, diz Fraga.

Fragmentados na esfera nacional como nunca antes visto na História do país, os partidos da oposição decidiram juntar as forças para impedir que Rovira alterasse a Constituição. Depois do resultado de ontem, a idéia da oposição é formar um espaço político nacional no qual possam confluir lideranças do denominado ¿centro-progressista¿ - um arco que inclui centro e centro-direita.

O plano é do ex-governador de Misiones, o milionário Ramón Puerta, que na crise de dezembro de 2001 foi - durante 48 horas - presidente provisório do país. Puerta aposta em reunir as principais lideranças da oposição a Kirchner fora do partido peronista, como o ex-ministro da Economia, Roberto Lavagna; o presidente do Boca Juniors, Maurício Macri; o ex-ministro da Economia Ricardo López Murphy e o governador de Neuquén, Jorge Sobisch.

O problema, afirmam os analistas, é que essa será uma aliança com ¿muitos caciques e poucos índios¿. Ou seja, todos aspiram à presidência do país e dificilmente algum deles aceitaria o cargo de vice ou outro posto menor. Por causa desse cenário de egos inflados, da falta de fundos e da ausência de uma máquina estatal, consideram que será difícil articular ao longo dos próximos meses uma candidatura única que possa disputar a presidência do país contra Kirchner com chances de vitória.

Rovira abusou do aparato estatal para tentar vencer a eleição, ¿importando¿ cidadãos paraguaios para que - passando por argentinos - votassem a seu favor. ONGs que fiscalizavam a eleição confirmaram a existência de pessoas mortas nas listas dos eleitores cadastrados. Os ¿ressuscitados¿ até apareceram na escola onde votou Rovira. Ali estava registrado seu próprio pai, falecido há mais de 20 anos.