Título: A reforma do Orçamento
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/08/2006, Notas e Informações, p. A3

Uma das marcas principais da democracia moderna é o ritual orçamentário, com a submissão do programa de gastos públicos à apreciação do parlamento. Cabe aos parlamentares, em nome dos cidadãos, aprovar não só a criação e a modificação dos impostos, mas também a destinação do dinheiro arrecadado. No Brasil, todo esse processo funciona muito mal e pode ficar pior, se o Congresso aprovar a adoção do orçamento impositivo. Mas há uma novidade positiva: o governo parece, afinal, disposto a cuidar seriamente do assunto, propondo uma lei para reformar as práticas orçamentárias.

Nesta altura, a iniciativa do Executivo é pelo menos uma questão de prudência. Nesta semana foi aprovada em segunda votação, no Senado, uma proposta de emenda constitucional para adoção do orçamento impositivo. A próxima etapa será o exame do assunto pela Câmara dos Deputados. A base governista poderá derrubar o projeto, mas isso apenas impedirá o agravamento do problema. Surgirão novas pressões e, de toda forma, a manutenção do orçamento autorizativo, hoje em vigor, apenas preservará um dos mais ricos mananciais de corrupção da política nacional.

Pelo sistema impositivo, em geral adotado nos países mais desenvolvidos, o governo é obrigado a executar os gastos aprovados pelo Parlamento e sancionados pelo chefe do Executivo. Se esse regime valesse no Brasil, o Tesouro teria provavelmente quebrado há muito tempo e nenhum esforço de ajuste fiscal teria ocorrido nos últimos anos. No regime em vigor, os parlamentares costumam reestimar a receita generosamente. Com esse artifício, abrem espaço para os gastos pretendidos.

Na maior parte, essas despesas são destinadas a obras e ações de alcance paroquial e clientelístico, sem a mínima vinculação com projetos de interesse nacional. Mas seu destino verdadeiro pode ser muito pior. A prática das emendas individuais é uma oportunidade para assalto ao Tesouro. O escândalo das ambulâncias superfaturadas, também conhecido como caso dos sanguessugas, é só um exemplo dos abusos costumeiramente cometidos.

Apesar disso, nas condições de hoje, é inaceitável a idéia do orçamento impositivo. É preciso passar a limpo o processo orçamentário. Não basta criar defesas contra a corrupção, manter vigilância, investigar os desmandos e punir os ladrões do dinheiro público. Em qualquer sistema podem ocorrer tentativas de assalto ao Tesouro. Alguns sistemas, como o brasileiro, são particularmente vulneráveis à malandragem. Outros são muito mais protegidos, mas nenhum regime é inteiramente seguro.

O primeiro passo, portanto, é tentar mudar a concepção do processo orçamentário. É necessário introduzir novas práticas e tornar o orçamento menos sujeito à influência dos interesses pessoais. No atual sistema, nem sequer ocorre a discussão da maior parte das emendas propostas. Predomina a prática da barganha: cada qual procura garantir a inclusão de sua emenda, negociando a troca de apoio com outros parlamentares.

Como a execução dessas despesas não é obrigatória, o Executivo tem liberdade para contingenciar verbas. Tem liberdade, também, para decidir a liberação de recursos de acordo com seus interesses políticos, dando preferência às emendas apresentadas por seus aliados.

Todo o sistema, portanto, é viciado e pouco funcional, com enorme desperdício de recursos e baixíssima eficiência no planejamento e na execução de políticas prioritárias.

Já começou, no Executivo, a discussão de um projeto de reforma do sistema. Um projeto realmente ambicioso incluiria a redução, ou até a eliminação, das vinculações de verbas, para ampliar o campo do planejamento governamental. Não está claro, por enquanto, se essa questão será atacada.

Mas o governo se mexe, enfim, e isso permite a esperança de uma reforma pelo menos parcial, no caso de Lula ser reeleito. Será necessária uma longa adaptação a novos padrões, antes da adoção do orçamento impositivo. Será melhor completar a mudança apenas quando as novas práticas se tiverem tornado rotineiras. Empenhado na reeleição, o governo tem interesse concreto em afastar o risco da adoção prematura do orçamento impositivo. Melhor para todos, se esse risco for neutralizado.