Título: Se é a 3ª Guerra, estamos perdendo
Autor: Martin Ivens
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/08/2006, Internacional, p. A22

Francis Fukuyama estava errado - a história teimosamente se recusou a chegar a um fim. Justamente quando os rituais funerários do ¿império do mal¿ da União Soviética foram pronunciados, a ameaça do islamismo militante surgiu no horizonte. Mas que tipo de ameaça o Ocidente realmente enfrenta? Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara dos EUA e ainda uma força da direita americana, não tem dúvidas sobre as proporções da contenda. ¿Estamos nos estágios iniciais do que eu descreveria como a 3.ª Guerra Mundial¿, disse Gingrich na semana passada, referindo-se ao combate entre o Hezbollah e Israel por cima do cadáver do Líbano.

Ele não é o único. O presidente Bush citou a 3.ª Guerra Mundial em referência ao 11 de Setembro e Tony Blair falou de um ¿arco de extremismo¿ que atravessa o Oriente Médio até o Afeganistão. Está na hora de colocar os capacetes? A influente tese do ¿choque de civilizações¿ de Samuel Huntington, o pensador estratégico americano, já foi bem ruim, lançando 1 bilhão de muçulmanos enfurecidos contra o Ocidente, mas uma guerra mundial pressupõe horrendas baixas e uma rotina de guerra perpétua que as democracias temem e prefeririam evitar pensar nisso.

A idéia do inimigo ¿islâmico-fascista¿ causa grande impacto, mas na verdade deixa algo a desejar. Certamente Michael Aflaq, fundador do movimento Baath que chegou ao poder no Iraque e na Síria, era admirador de Hitler. Mas ele veio de uma família cristã e seu movimento era militantemente secular. Um fascista do Baath como Saddam Hussein pode exaltar o uso da violência, mas isso não faz dele um fundamentalista islâmico - como suas vítimas xiitas podem atestar. Bashar Assad, da Síria baathista, é aliado do Irã teocrático por oposição a Israel e aos Estados Unidos, não por ideologia. Israel realmente se confronta com inimigos islâmicos reais que gostariam de ver o país ¿varrido da face da Terra¿, mas a questão palestina tem sua própria dinâmica, seus próprios erros e acertos. Além disso, um muçulmano sunita não é igual ao um xiita.

Uma coisa é travar uma luta titânica pela existência com um inimigo mortífero. Mas como isso explica nossa resposta protelatória, mesquinha? Uma guerra mundial implica a mobilização de vastos recursos, de sociedades inteiras, para uma finalidade. Mas nossos Roosevelts e Churchills de ultimamente certamente não mobilizaram recursos como os que geraram os desembarques na Normandia em 1944.

A preferência do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, foi pela ¿guerra light¿ no Afeganistão e no Iraque e não pela transformação da sociedade dos derrotados nas proporções da ocupação, pelos aliados, da Alemanha e do Japão depois de 1945. Coitado do comandante dos EUA na Zona Verde em Bagdá, que tem de ¿governar¿ um vasto território com tão poucas botas no chão. Em termos de guerra mundial, também não estão sendo feitos sacrifícios na frente doméstica. O preço da gasolina na bomba não está sendo elevado um centavo para livrar os EUA da dependência do petróleo do Oriente Médio. Quanto aos nossos extremamente mal-equipados heróis em Helmand e Basra, Gordon Brown não vai abrir seus cofres para eles tão logo. Esqueça o miserável orçamento da Defesa e a mínima cobertura aérea, pois Brown não consegue nem mesmo um kit decente para os soldados britânicos. Isso é um desafio para nosso secretário do Tesouro que quer guardar o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. Ou ele deve dizer que a teoria de intervencionismo liberal de Tony Blair foi um enorme e completo erro ou, no seu mais recente disfarce como defensor da dissuasão nuclear, deve fornecer recursos adequados às Forças Armadas.

Isso dito, existem algumas coisas que merecem serem defendidas - a democracia e os valores liberais. E Israel compartilha, sim, deles. Nos países muçulmanos existe uma ameaça real dos fanáticos determinados a depurar seus compatriotas de qualquer nódoa ocidental, cultores da morte que veneram apenas o lado sombrio da religião. Eles estão decididos a investir contra os interesses e civis ocidentais ao redor do mundo, quer optemos por combatê-los ou não, embora como alvos fiquemos em segundo lugar atrás de seus co-fanáticos.

É verdade que os órgãos de informações do Ocidente -- e também da Rússia - cometeram o erro de pressupor que Saddam ainda tinha armas químicas quando elas já haviam sido destruídas depois da primeira Guerra do Golfo. Mas a idéia de armas nucleares nas mãos de terroristas ou de um fanático apocalíptico como o presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, é suficiente para gelar o sangue nas veias. É encorajador o fato de que escritores e políticos da esquerda e da direita da Grã-Bretanha - por meio de grupos de coalizão tais como a recém-fundada Sociedade Henry Jackson (batizada em honra de um senador democrata que acreditava faltar à realpolitik de Henry Kissinger tanto dimensão moral como qualquer senso de otimismo quanto a uma eventual vitória sobre a União Soviética) e da organização de centro-esquerda Manifesto Euston - estão assumindo a batuta de George Orwell e de outros intelectuais da Guerra Fria para defender valores liberais e se opor ao antiamericanismo.

Ainda assim, travar uma nova guerra fria contra o islamismo militante em âmbito doméstico e no exterior exige talento e astúcia; significa estabelecer um equilíbrio entre o comedimento e o uso da força, entre a segurança doméstica e a proteção das antigas liberdades num Estado de segurança. Esta é a advertência da história sobre a Guerra Fria. Naquela época, como agora, pessoas de princípios elevados foram seduzidas pela idéia de um inimigo satânico monolítico. Elas reduziram a complexidade a uma cruzada e um inimigo.

Alguns lutadores da Guerra Fria viram um único inimigo fabricado em Moscou, não se dando conta de que a China de Mao e até a Iugoslávia de Tito tinham suas próprias ambições. Ditadores do Terceiro Mundo aliados da União Soviética também tinham suas próprias agendas.

Divergências sobre como combater tal inimigo são inevitáveis. Sem o benefício de uma retrospectiva, se você apoiou a bem-sucedida Guerra da Coréia você deveria automaticamente defender o combate aos comunistas no Vietnã? Se você fez isso, deveria ter tentado tirar proveito das divisões sino-soviéticas? Será que importou se nossos aliados no Terceiro Mundo eram filhos da p..., desde que fossem nossos filhos da p..., ou deveríamos ter feito acordos somente com os mais puros democratas (como alguns neoconservadores sugerem hoje?) Aplique essa analogia ao Oriente Médio, Al-Qaeda, guerra no Iraque, programa nuclear iraniano e baathistas: quando combatê-los e quando coibi-los? Será que estamos unindo nossos inimigos em vez de dividi-los? Certamente, um Afeganistão sob domínio do Taleban não pode ser tolerado. No que diz respeito a Saddam, na minha opinião deveria ter sido derrubado há muito tempo. Mas mesmos os mais beligerantes defensores da guerra com o Iraque não podem negar que seus oponentes têm uma justificativa mais forte hoje. E o Irã é uma proposição ainda mais complicada. O problema é a bomba ou é o regime? Precisamos urgentemente de uma síntese entre idealismo e realismo.

A tarefa urgente é lidar com o ¿arco da crise¿ de Blair no Oriente Médio. Talvez devamos primeiro descobrir que conseguimos separar os palestinos de alguns de seus ¿amigos¿. Os líderes do Hamas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia são definitivamente contrários à existência de Israel ou poderão ser separados dos líderes militares do grupo na encrenqueira Síria? Devemos descobrir isso logo.

Na Grã-Bretanha temos uma forma curiosa de combater o terrorismo. Blair convocou uma guerra de idéias contra a ideologia fundamentalista, mas a chancelaria, órgãos de informações e mais recentemente a Secretaria do Interior se uniram para transformar Londres em Londrestão, lugar de origem para missões suicidas no exterior e base missionária para a militância.

Mesmo depois dos ataques de 7 de julho de 2005, o governo ainda está dando ouvidos aos islâmicos radicais, à custa da vasta maioria não radical. O pessoal encarregado da segurança espera cooptar os islâmicos radicais ¿maleáveis¿ como fez com o Sin Fein/IRA. Os clérigos islâmicos ainda não defendem as missões suicidas na Grã-Bretanha, mas as aprovam em Israel. O prestígio e influência deles entre os muçulmanos só podem aumentar. Se isto realmente fosse uma 3ª Guerra Mundial, então, na frente doméstica, estaríamos perdendo. TRADUÇÃO DE MARIA DE LOURDES BOTELHO